Quando se registrou os primeiros tremores de terra, em 2018, Alice, 10, morava com a tia Maíra Silva, 44, no Pinheiro, um dos bairros de Maceió (AL) afetados pela mineração da Braskem. Entre seu repertório de lembranças do lugar cheio de afeto antes do deslocamento forçado, ela sente falta dos colegas da escola próxima de casa, da antiga professora e dos amigos do bairro onde vivia, que, de repente, se transformou em escombros.
“Na escola era onde a gente queria estar todos os dias, assistir às aulas, participar das brincadeiras. Eu gostava muito de lá. Hoje não tenho amigos na escola nova, não tenho mais os amigos da rua”, lamenta Alice.
Após quatro anos deste que é considerado o maior crime ambiental em solo urbano do mundo, fazendo com que cerca de 55 mil famílias fossem removidas emergencialmente de suas casas nos bairros Pinheiro, Mutange, Bebedouro, Bom Parto e boa parte do Farol, pelo risco de afundamento, restam imóveis abandonados, muros destruídos e a vida da população alagoana transformada pelo deslocamento forçado.
A dona de casa Maíra lamenta ter saído do lar que tinha acabado de receber de herança após o falecimento da sua mãe porque sua residência entrou na área de risco definida pela Braskem. Ao som de um louvor gospel, ela recebeu a reportagem do Lunetas na nova casa que paga com o aluguel social disponibilizado pela mineradora, localizada no bairro Tabuleiro do Martins, parte alta de Maceió, onde mora com o esposo e os filhos Elisama, 10, Moisés, 7, além dos netos Anthony, 7 e Alice, 10. A nova morada não reflete o conforto nem tem a rede de amigos do antigo bairro.
Estudos feitos à época pelo Serviço Geológico do Brasil apontaram que o terremoto na capital alagoana, no dia 3 de março de 2018, foi consequência do desabamento de minas subterrâneas da Braskem ao explorar o salgema. A tia de Alice não consegue esquecer o fatídico dia. Ela recebe tratamento psicológico e toma ansiolíticos para suportar tantas perdas.
“Eu olhava para um lado, olhava para o outro, e dizia: ‘meu Deus, e agora?’. Você dormir e acordar num lugar totalmente diferente, uma realidade totalmente diferente. Eu não tenho nem palavras. A dificuldade é grande durante toda essa espera dolorosa até receber a indenização”, diz. O filho, que tinha uma oficina no local, já recebeu a indenização, mas a dona de casa segue aguardando a compensação financeira ofertada pela empresa. “Todos os dias eu olho onde tem casa para vender, para ver se eu gosto de alguma, se o lugar vai fazer bem pros meus filhos, se é perto do colégio. A gente já não aguenta mais tanta mudança”, desabafa.
Uma cidade fantasma e os impactos da mineração
Escolas, hospitais, cemitérios, templos e outras construções tombadas como patrimônio histórico, além do centro de treinamento de um dos principais times de futebol do Estado, estão entre os escombros. O abandono impactou a oferta de serviços públicos e privados, afetou o trânsito da cidade e a segurança daqueles moradores que ainda não saíram das regiões de risco ou que moram em localidades próximas.
De acordo com o doutorando em sociologia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Adson Ney Amorim, moradores de uma comunidade de pescadores de Flexal de Cima e Flexal de Baixo, no bairro do Bebedouro, ficaram isolados da cidade, pois ainda não entraram no mapa de riscos elaborado a partir de estudos da Defesa Civil local e do Serviço Geológico Brasileiro, órgãos que determinam o fechamento das áreas afetadas.
Para amenizar os transtornos para os moradores dos bairros impactados e da população em geral, o Programa de Compensação Financeira e Apoio à Realocação, que conta com assistência psicológica, ações de preservação ambiental e conservação do patrimônio histórico da região, disponibiliza os valores de R$ 5 mil para mudanças, R$ 1 mil para o aluguel social durante seis meses e valores definidos para indenização a partir da localização do imóvel e o valor de mercado, segundo critérios da Braskem.
Com o programa, “a mineradora tem adquirido os imóveis afetados por um valor abaixo do mercado imobiliário local e está se tornando proprietária de cinco bairros de Maceió”, aponta Amorim. “Os moradores denunciam os perigos envolvidos nesta movimentação”, esclarece. O portal Observatório da Mineração estima que, a longo prazo, a área urbana possa render R$ 40 bilhões para a petroquímica.
Segundo laudos emitidos até então, a estabilização do solo na região dos bairros afetados poderá ocorrer em um período entre 10 e 20 anos. Mas a Braskem tem refutado os argumentos de pesquisadores, lideranças comunitárias e moradores, comenta o sociólogo. Segundo ele, a empresa diz que, com a estabilização, as áreas afetadas poderão voltar a servir de moradia humana.
O Ministério Público Estadual (MP/AL), que tem acompanhado o caso Braskem, diz que, pelo acordo estabelecido entre as autoridades públicas e a mineradora, não pode haver construções na região. Até o momento, ninguém foi responsabilizado pelo crime ambiental.
Felicidade no passado e as consequências do deslocamento forçado para as crianças
Elisama, 10, uma das filhas de Maíra, sente na pele os impactos causados pela realocação forçada. Quando morava no bairro Pinheiro, ela gostava de juntar os amigos para brincar, mas hoje é tudo diferente, reclama. Embora se sinta bem por ter saído por conta do risco de desabamento na região, ela fica triste por não ver mais os amigos e as pessoas que ama. “Era todo mundo do meu lado. Todo mundo ali era uma família, na minha escola eu praticamente conhecia todo mundo”, relembra.
A psicóloga Rosemeire dos Reis tem recebido as crianças dos bairros afetados pela Braskem em seu consultório. Em geral, são quadros graves de ansiedade; em alguns casos, precisou recomendar acompanhamento psiquiátrico. Isso porque a saúde mental começou a interferir na qualidade de vida e em alguns outros comportamentos (sono, alimentação, cansaço).
“O suporte não pode ser só para a criança, afinal o deslocamento forçado pela mineração tem impactos que são sentidos por todos os envolvidos. Na terapia, é preciso apoiar o grupo familiar e trabalhar a memória da criança que vivenciou eventos traumáticos e o fator que lhes causou sofrimento psicológico”, ressalta. “A gente trabalha a intensidade dessa dor, a lembrança contínua do trauma. A partir de novas experiências e novos vínculos, a criança pode seguir sua vida de forma natural. Lembrando que cada criança vai ter o seu enfrentamento.”
A socióloga Weldja Marques Lima diz que também é preciso levar em consideração os impactos do deslocamento às pessoas e comunidades que não tiveram escolha. “A maioria enfrenta desafios inimagináveis para buscar a proteção para elas e suas famílias”.
Weldja salienta que o deslocamento em Maceió foi provocado pelo maior crime ambiental em área urbana no mundo, afetando as pessoas em aspectos que vão desde perdas simbólicas a perdas materiais. “Deixar a casa, a escola, a vizinhança, a praça, a quadra de esportes, o campinho de futebol, os amigos de escolas e do seu bairro, sem ser sua escolha, repercute nas interações que podem ser observadas na infância dessas crianças”, diz. “Essas crianças podem apresentar experiências socioemocionais observadas individualmente e de forma coletiva em torno dessas mudanças do seu lugar de origem.”
Questionada pela reportagem, a Braskem se manifestou informando que oferece serviço de apoio psicológico gratuito para todas as pessoas (inclusive crianças e adolescentes) e que os atendimentos passaram a ser realizados de maneira on-line durante a pandemia de covid-19. De acordo com a empresa, as famílias podem obter mais informações sobre a assistência psicológica por meio de ligação gratuita pelos telefones 0800-006-3029 ou 0800-954-1234. Também reafirmou que as famílias residentes nas áreas de desocupação estão incluídas no Programa de Compensação Financeira e Apoio à Realocação. “A assistência tem o objetivo de apoiar no processo de compreensão de questões emocionais, comportamentais e de relacionamento. O atendimento é definido entre o morador e o psicólogo, e a quantidade de consultas e o período do tratamento variam conforme avaliação do profissional de saúde sobre a necessidade de cada paciente. Pessoas com dificuldade de locomoção podem ser atendidas em domicílio”, diz trecho da nota.
O deslocamento forçado – motivado por guerras, violência, perseguições e violações de direitos humanos – afetou 82,4 milhões de pessoas em todo o mundo, segundo dados da Acnur (Agência da ONU para Refugiados), em 2020.