Eram seis horas da manhã de um sábado, e o sol despontava em simbiose perfeita com o rio, no Porto da Ceasa (Central de Abastecimento do Amazonas S/A), localizado na Zona Leste de Manaus (AM), de onde saem inúmeras embarcações para o município do Careiro da Várzea, a 15 minutos de distância da capital. É lá de onde partimos em busca de mostrar como os moradores estão lidando com mais uma cheia, tão comuns nesse período na região. Mas, com a diferença de que esta alcançou o recorde histórico, desde o início dos registros, em 1902: o nível do Rio Negro chegou a 30,02 metros em Manaus, na última quarta-feira (16).
De acordo com o boletim da Defesa Civil, em todo o Amazonas, mais de 455 mil pessoas foram atingidas pela cheia. A previsão do Serviço Geológico do Brasil (CRPM) é de que o nível do rio comece a baixar após ultrapassar os 30 metros – o patamar normal para as cheias é até 27 metros.
Ao lado do porto do Careiro da Várzea está São Francisco de Assis, comunidade localizada à beira-rio, onde o deslocamento é feito por estreitas passarelas flutuantes de madeira (conhecidas como marombas) e as casas são construídas em cima dos rios sobre palafitas. Mas, devido à cheia, todas as residências estão com o chão alagado, os móveis suspensos ou os assoalhos levantados.
Entrecortada por inúmeros quilômetros de marombas, a comunidade vive naturalmente com o vai e vem dos moradores, como se estivessem alheios ao transbordamento do rio. Alguns tomam café, outros vão à padaria, tem os que se preparam para pescar e os que estão retirando o lixo, que insiste em subir nas pontes. Também há muitas crianças que só esperam para dar a “frexada” (mergulho) nas águas do rio, sem medo do que podem encontrar por ali. Naquela água cor de guaraná, cobras e jacarés convivem tranquilamente.
“Gosto de pular na água com meus amigos. Não tenho medo de jacaré e cobra. Quem tem é minha mãe, que fica me vigiando”, fala naturalmente, Manuelle, 8, enquanto tenta brincar de patinete, no minúsculo pátio à frente de sua casa, rodeada pelas águas do Rio Negro.
Manuelle representa a típica criança ribeirinha amazonense, que tem uma relação íntima com a água, desde sempre. A mãe da menina, Estela Guedes, confirma o receio. “Tenho medo de ela contrair doença ou de algum bicho pegá-la, mas ela não tem medo não!”, conta.
Mickaely, 5, vizinha de Manuelle, conta que já viu um jacaré comer um cachorro na beira do rio da comunidade, e que uma cobra comeu sua galinha que morava na parte de trás da casa. “Eu vi o jacaré levar o Fred [o cachorro] e tenho medo que leve os outros”, relata, com uma calma natural de quem vive há meia década acompanhando o sobe e desce das águas.
A pequena estuda numa creche que fica exatamente nos fundos de sua casa, que está alagada. “Ela já tinha começado a estudar, mas não tem como continuar desse jeito. Depois volta ao normal”, diz o avô Adão Ferreira.
Diante do que seria um estranhamento de quem não conhece essa relação íntima entre crianças amazônicas e a cheia do rio, a antropóloga Fabiane Santos esclarece que essa situação não é nova nem desconhecida pela população ribeirinha.
“Temos reajustes por conta de tempo, volume, mudanças climáticas, mas sabemos que as cheias são uma dinâmica do fenômeno amazônico. Porém, os resíduos domésticos são levados pelas águas e se instalam onde não deveriam ficar. Isso gera preocupação com as crianças, mas elas continuam explorando o local. Então, é normal tomarem banho no rio e conviverem com animais. É, inclusive, uma demanda pela sobrevivência”, pontua.
Maxwel, 8, estava tirando água da canoa para pescar com o avô Raimundo Pinto. Apesar da pouca idade, tem experiência com a pesca e, mesmo na cheia, continua saindo para buscar o pescado. Além de ir atrás dos peixes para a alimentação da família, pular na água é sua diversão favorita. “Gosto de pescar com meu avô, mas também é bom tomar banho aqui”, diz o garoto, apontando para as águas abaixo, e em volta das casas e pontes.
“Quando pensamos nas crianças em meio a essa situação, precisamos levar em conta o comportamento ambiental das cidades e seu impacto. As crianças estão fazendo o que sempre fizeram: explorando e se preparando para enfrentar esse ambiente. Não é algo reprovável. Mas, claro, os adultos se preocupam [com os riscos], e precisam se preocupar mesmo”, esclarece a antropóloga.
Sentado num canto em frente à casa, entretido com o celular, Elias, 4, usa um equipamento inusitado para quem vive no local: um colete salva-vidas. A mãe, Luiza Alma, teme que o filho caia na água. “Ele não sabe nadar e, por isso, a atenção é redobrada, apesar de ele não ter medo e querer brincar no rio. Então, está sempre de colete”, diz, enquanto tenta tirar o lixo que invade as pontes.
O geógrafo Carlos Durigan explica que, em áreas mais populosas, a preocupação é sempre com a qualidade da água – usada para banho, pesca e preparo de comida – principalmente pela presença do lixo doméstico.
“São estilos da vida amazônica e as pessoas convivem de forma natural com tudo. Mas precisamos discutir o fato de que o espaço urbano não respeitou os ribeirinhos”, acrescenta.
Ainda no mês de abril, a Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas (FVS-AM) fez um alerta para o aumento do risco de transmissão de doenças no período das cheias dos rios. O órgão orientou a população sobre a contaminação por doenças como hepatite A (que acontece por meio da ingestão de água e alimentos contaminados) e leptospirose (transmitida pela urina do rato).
A FVS também alertou para o aumento de ocorrência de acidentes com animais peçonhentos. “As enchentes provocam a dispersão desses animais que são desalojados de seus abrigos e buscam outros ambientes com refúgio, inclusive o doméstico”, explica Tatyana Amorim, diretora técnica da FVS-AM. De janeiro a março deste ano, 826 pessoas sofreram acidentes com estes animais, como cobras, aranhas, escorpiões, lagartas e abelhas.
Fenômeno natural x mudanças climáticas
A cheia no Amazonas é um fenômeno natural. O Rio Negro apresenta uma dinâmica, com os períodos de cheia durante os meses de dezembro a junho, e de vazante no restante do ano, com nível inferior a 27 metros.
O que vem mudando, nos últimos anos, é que o rio tem apresentado cheias mais frequentes, segundo a engenheira hidróloga, Luna Gripp, pesquisadora do CPRM. “A elevação dos níveis dos rios, a depender da magnitude da cheia, pode causar diversos impactos à população, uma vez que no Amazonas as comunidades são estabelecidas muito próximas aos rios, deixando-as em situação vulnerável”, salienta.
Carlos Durigan confirma que o Amazonas está passando pelo resultado de período de intensas chuvas, que começou desde o final do ano e está relacionado ao fenômeno La Niña, caracterizado pelo resfriamento das águas do Oceano Pacífico. “No caso específico do Amazonas, o cenário é o aumento significativo de chuvas no norte da América do Sul, que ocasionam as cheias da época. Mas, neste ano, o fenômeno foi maior.”
O especialista explica que nos últimos anos houve intensificação dos períodos chuvosos, sendo que os quatro maiores registros de cheias estão concentrados nesta última década. “Estamos nos extremos de cheias e queimadas, que são justamente um dos aspectos na mudança climática global”, salienta.
Consequências da cheia no Amazonas em números
O recorde de 30,02 metros do Rio Negro trouxe uma série de impactos para a vida de uma parcela vulnerável da população da cidade, que mora às margens dos igarapés de Manaus.
As águas no porto, na região central da capital, alcançaram a calçada e chegaram a algumas ruas, que estão interditadas. Foram construídas mais de 10 mil metros de pontes provisórias na capital e na zona rural. Até agora são mais de duas dezenas de bairros com pontos de alagamento e cerca de 24 mil pessoas atingidas com a cheia do Rio Negro, situação que fez a prefeitura decretar situação de emergência.
Em todo o Estado do Amazonas, segundo informações da Defesa Civil, 58 dos 62 municípios estão enfrentando problemas com a enchente. Até então, 25 decretaram situação de emergência. Mais de 87 mil pessoas estão desalojadas. Na última semana, milhares de famílias tiveram perdas na produção agrícola devido às enchentes dos rios, de acordo com um balanço divulgado pelo Instituto de Desenvolvimento Agropecuário e Florestal Sustentável do Estado do Amazonas (Idam).
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