Marcos Vinicius tinha 14 anos quando uma bala o atingiu a caminho da escola, num dia de operação policial na Maré, em 2018. Para outras crianças que vivem nas 16 favelas do Complexo, no lugar da alegria em rever os amigos e descobrir quem serão os novos professores, o portão fechado da escola indicava medo e falta de segurança.
“Falamos de muitos temas difíceis na literatura infantil, mas às vezes de realidades tão distantes. E sobre as nossas guerras, como falar com crianças?”, questiona a editora Isabel Malzoni. Então, o livro “Eu devia estar na escola” traz relatos sobre o que crianças e adolescentes sentem em meio à violência e aos conflitos armados.
Desenvolvido em parceria com a Redes da Maré, esse livro de não-ficção é narrado e ilustrado por moradores daquela favela. Eles relatam o que é ter a infância impactada pelas frequentes e violentas operações policiais como medida de enfrentamento do governo brasileiro ao também violento varejo de drogas. O processo de escuta aconteceu em diversas oficinas com crianças de cinco anos a adolescentes de 17 anos, em especial os representantes de sala das escolas da Maré. Lançado em março de 2024, o livro terá os direitos autorais da venda destinados aos projetos da Redes da Maré que envolvem segurança pública e as infâncias.
A autoria é das crianças
As pesquisadoras Adelaide Rezende e Ananda Luz, junto da editora Isabel Malzoni, ficaram responsáveis por articular e sistematizar o que ouviram. Mas, são as crianças as autoras dessa coleção de frases do livro “Eu devia estar na escola”.
“Nossa sociedade não costuma escutar as crianças e, quando escuta, certamente não são as que vivem nas favelas”, afirma a pedagoga Ananda Luz. “Não havia outra forma de fazer este livro senão dando o devido valor e importância à palavra de quem enfrenta a violência no seu cotidiano.”
Segundo Adelaide Rezende, psicóloga e pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos da Infância e Juventude da UFRJ, “desde cedo, [as crianças da Maré] vivem impactos que interferem diretamente no cotidiano e deixam marcas que são estruturantes e seguem por toda a vida.”
“É duro pensar que uma parcela das crianças brasileiras têm de lutar desde muito cedo para continuar viva”, diz Eliana Sousa Silva, diretora e fundadora da ONG Redes da Maré. ”Mas, por outro lado, me encanta o modo como as crianças das favelas da Maré chamam a atenção e proclamam que as violências sofridas por elas não podem fazer parte de suas vidas. Não sem que a sociedade reconheça o absurdo que é isso.”
As cartas da Maré
Na Maré, o nono bairro mais populoso do Rio de Janeiro, mais da metade dos cerca de 130 mil moradores têm menos de 30 anos. Desses, 11% são crianças de até 6 anos. Assim, desde cedo há exposição às violências do território e segurança pública é assunto recorrente. A população então escreveu sobre as dores, as angústias e os traumas causados pelas operações policiais que afetam suas vidas.
Mais de 1.500 cartas ganharam a mídia – que, dessa vez, não se restringiu a noticiar números de mortos – e foram entregues ao Tribunal de Justiça do Estado pela Redes da Maré, em 2019. Isso resultou na retomada de uma série de regras para proteger a população. A Ação Civil Pública da Maré (ACP), vigente há dois anos, estava suspensa. Contudo, a medida se comprovou eficiente para diminuir de forma gradativa a violência letal no complexo.
Essas cartas seriam então o ponto de partida para um livro que mostrasse a realidade das crianças da Maré. Desde então, o projeto de “Eu devia estar na escola” está sendo pensado. Depois de uma interrupção por conta da pandemia, começou enfim a tomar forma em 2023.
Assim como as realidades vividas pelas infâncias da Maré são complexas, contar sobre elas também foi. Mas essa história não acaba aqui. Por isso, o livro reproduz o modelo da carta que as crianças escreveram ao poder público. Está em branco, como convite para que este movimento siga a mostrar os temas que atravessam as infâncias da Maré e inspire ação.
Em 2023, segundo o boletim Direito à segurança pública na Maré, produzido pela organização social Redes da Maré, foram 15 dias de atividades suspensas nas escolas em decorrência de 27 operações policiais. Dessas, 62% aconteceram próximo a escolas e creches. Além das operações policiais, a comunidade é impactada também pelos confrontos entre grupos armados, por disputa de território.