“Lembrei que pra eu ser a melhor, tenho de ser melhor que o melhor”, diz Coraline. A personagem, criada por Alexandre Rampazo, mostra que quem tem recursos limitados precisa se empenhar o dobro para conseguir um pódio em uma competição de natação na escola. Mas nem sempre apenas se esforçar é suficiente.
Assim, a menina que refletiu sobre o lápis cor de pele, no livro ‘A cor de Coraline’ (Rocco, 2017), volta agora em “Um lugar para Coraline” para falar às crianças sobre meritocracia.
Para ela, competir com quem é mais alto e mais forte, não parece muito justo. A realidade dos colegas que moram em prédios com piscina é bem diferente da sua e da amiga Vitória, ambas filhas de funcionárias da escola. Estar em desvantagem na largada e começar perdendo torna o jogo bem mais difícil.
Ao acompanhar uma competição de natação na escola, o leitor acessa as reflexões de Coraline sobre desigualdades sociais e privilégios. Dessa forma, ao debater sobre como recursos limitados dificultam ou impedem os caminhos de muitos, essa menina “pensadeira” coloca em pauta a meritocracia, em uma linguagem que se conecta com crianças e adultos.
Além disso, os meninos que costumam se destacar são posicionados primeiro e nas melhores raias. Ao perceber nuances que envolvem classe social e gênero, Coraline, quase esquecida pelo professor, teve de lembrá-lo de poder ocupar seu lugar.
“Eu nem gosto de competir, mas às vezes parece que a gente tem que mostrar tudo o que é capaz de fazer e qual é o lugar em que merece estar”, reflete Coraline.
A meritocracia desconsidera desigualdades sociais
Para Michael Sandel, filósofo político de Harvard, “nem todos têm a mesma chance de crescer”. Em “A tirania do mérito”, que também dá título ao seu livro (Civilização Brasileira), ele explica que “crianças que nascem em famílias pobres tendem a permanecer pobres quando crescem. Pais ricos podem passar suas vantagens aos filhos”.
Ele afirma que se todos tiverem chances iguais, os vencedores merecem seus ganhos. Mas, na prática, chances iguais não são a realidade. Ou seja, será que quem não sabe se a próxima refeição está garantida tem as mesmas condições para concorrer que uma pessoa que tem alguém para fazer as compras e cozinhar suas refeições todos os dias?
Pensar que todos têm oportunidade de crescer, desde que tenham talento e trabalhem duro, é uma forma de responsabilizar cada um por sua própria posição social. Com isso, fica mais confortável culpabilizar “quem não chegou lá”. Desse modo, a meritocracia como valor universal serve apenas à reprodução eterna de nossas desigualdades sociais e raciais.
“A meritocracia não tem funcionado a não ser para manter o privilégio de algumas pessoas”, defende Wellington Cruz, educador popular e assessor da Ação Educativa, associação que atua nos campos da educação, da cultura e da juventude, na perspectiva dos direitos humanos.
Para ele, com tantas desigualdades, é inviável pensar a sociedade brasileira a partir da meritocracia. “Estamos deixando de fora muitas pessoas, principalmente pretos, pardos, indígenas, mulheres, quem vem da periferia, tem deficiência”, define. Então, Cruz propõe que reverter a lógica meritocrática passa por considerar a “coletividade”, a exemplo de povos originários africanos e indígenas.
“Quem disse que a gente não chega mais longe de modo cooperativo e não necessariamente competitivo?”
Nesse sentido, é imprescindível a promoção de políticas públicas que garantam acesso igualitário a direitos como educação, saúde e moradia, defesa de ações afirmativas, como as cotas raciais e políticas inclusivas.
Como falar de meritocracia com as crianças?
O livro “Um lugar para Coraline” pode ser o ponto de partida para esta conversa, mas há outras possibilidades que o educador popular Wellington Cruz sugere:
- Conhecer o contexto em que se vive
Mostre desde cedo que a sociedade é diversa e que as oportunidades não são distribuídas da mesma maneira para todos. Por isso, é importante esclarecer o contexto em que se vive, as condições e oportunidades ao alcance de cada um.
- Saber sobre a história familiar
Quem são os que vieram antes das crianças? Onde eles viveram, que situações passaram? Todos conseguiram estudar, sabiam ler, chegaram à universidade? Cada família tem uma história, que pode refletir desigualdades ou oportunidades.
- Cultivar a empatia
Ao se questionarem “E se eu estivesse no lugar do outro, com menos direitos ou oportunidades, como eu me sentiria?”. Além de preservar a curiosidade e aguçar o senso crítico, a capacidade de se colocar no lugar do outro é uma forma de mostrar que o esforço individual nem sempre é suficiente para o sucesso.
- Brincar com jogos cooperativos
Oferecer às crianças jogos que priorizem a cooperação em vez da competição. Isso ajuda a entender que juntos é possível chegar mais longe e estimula a pensar soluções no coletivo e novos jeitos de se organizar.
- Resgatar histórias de luta por direitos
Há muitas pessoas que lutaram pelos direitos que temos hoje, como a liberdade com o fim da escravidão, o voto das mulheres e o direito de as meninas frequentarem as escolas. Seus esforços foram em direção ao bem coletivo, não individual.
Nem todos partem do mesmo ponto
Circula na internet um vídeo conhecido como corrida dos privilégios. Aqueles que tiveram pais presentes, nunca se preocuparam de onde viria sua comida e se fariam três refeições diárias, tinham uma casa para morar e educação de qualidade davam passos à frente antes de começar a corrida. Na hora da largada, quem fica para trás são aqueles que não tiveram acesso às mesmas condições, e não privilégios, aponta Cruz.