Era uma manhã ensolarada e o vento assobiava pelas janelas. Logo alguém sugeriu: vamos soltar pipa? A sala cedeu lugar a uma oficina de produção de brinquedo. Alice observava tudo pelo canto do olho, enquanto eu lhe dava o primeiro lanche do dia. Perguntei: você também quer brincar, filha? Ela sorriu afirmativamente, enquanto o pai, lá do outro canto, já mostrava as primeiras providências. Foram alguns minutos de arrastar de chinelos, chiado de papéis, estalos de bambus. O movimento parecia alheio às dúvidas que ocupavam meus pensamentos. Será que vamos conseguir proporcionar essa brincadeira à Alice, uma criança com deficiência? Como ela vai segurar a pipa, se não tem controle motor dos braços? Será que ela vai enxergá-la voando alto, mesmo com a baixa visão? Como manter a pipa de pé, se ela não corre? Empurramos a cadeira de rodas? De repente, alguém gritou:
– Vamos, tá pronta!
Fomos. Alice tinha os olhos brilhantes, de modo que foram eles os nossos guias nessa empreitada. Primeiro ela reparou na pipa: pousou a mão sobre o papel fino, colorido, e percebeu que o vento o atiçava insistentemente. No instante seguinte, ouviu a voz do primo já longe, correndo e celebrando a ventania que jogava a alegria pro alto. Sentiu o ar lhe atravessar o rosto, levantar os cabelos, arrepiar os braços. Riu da sensação de ter o invisível lhe fazendo cócegas. Fechou os olhos como quem quisesse apurar o sentir. Estava entregue à brincadeira e a pipa ainda nem estava voando.
Colocamos o fio em suas mãos, amarramos, na sequência, em um anteparo de sua cadeira de rodas e esperamos. O pai segurava a pipa à altura do peito, aguardando a rajada favorável. A pequena de olho nele, na pipa, no vento, no céu, no primo que ia e voltava e em tanto mais que não sei. Numa piscada, o papel fino, colorido, frágil foi pro alto, beijou o azul. Ela sentiu a fisgada da decolagem nas mãos e a festa da rabiola em seu nariz. Riu e fechou os olhos de novo, como quem experimenta algo bom.
Ríamos todos, afinal: eu, o pai, Alice, o primo e a manhã ensolarada de inverno. Todos, de certa forma, experimentávamos algo novo. A despeito da dura rotina dos dias, um desejo se impôs e, por causa dele, o cenário de uma manhã se fez pretexto. Brincar é urgente. Em todas as idades é urgente, um par de olhos brilhantes nos mostrou. Brincar é possível.
Qualquer que seja o corpo, o viço, há uma experiência para ser vivida, uma rota a ser descoberta. Uma não, múltiplas.
Brincar é explorar possibilidades e criar tantas outras. Colocar a pipa em voo foi como colocar Alice no chão comum da infância. Um lugar, um tempo que nem sempre lhe é garantido, pois esperam que ela pise firme nas terapias, no vir-a-ser. Ali, com os olhos fechados e o riso displicente, sentindo o fio lhe percorrer os dedos e o vento abraçar o corpo… ali ela é. Hoje. É uma criança. Um imperativo de ser tão poderoso que nos convida a ser também. Ser junto. Ou tornarmo-nos o que ela precisa para só ser. Afinal, aprender a ser brincante, adulto ou criança, é manter uma manhã de inverno ventando convites dentro da gente.
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