Durante as Olimpíadas de Tóquio, a ginasta norte-americana Simone Biles (considerada a melhor da história) optou por ser campeã fora do circuito das competições: em benefício da própria saúde mental e emocional, Biles desistiu dos jogos, tendo atuado somente em parte da final nas provas por equipes e da trave. Embora o evento já tenha acabado, a corajosa atitude, motivada pela pressão que a atleta sentia, fez o farol apontar mais uma vez para temas que se debruçam sobre a real condição emocional, física e psicológica que as jovens atletas vivenciam durante a carreira.
Parte do trabalho rigoroso da equipe técnica, longos treinos diários ocupam a agenda de meninas e adolescentes por anos e, muitas vezes, podem causar nas atletas pressão psicológica, distúrbios alimentares, abusos sexuais, violência física e verbal, medo e solidão. Com o objetivo de tocar na ferida e mover novas denúncias mundo afora, o documentário Atleta A, disponível na Netflix, apresenta o sombrio bastidor da Federação de Ginástica dos Estados Unidos, algo que infelizmente também ocorre em outros esportes.
Os diretores Bonni Cohen e Jon Shenk ouviram sobreviventes que têm em comum o histórico de abusos sexuais sofridos nas mãos do ex-médico da Federação, Larry Nassar. Condenado a 300 anos de prisão por duas décadas de abuso a 156 menores e jovens mulheres (incluindo campeãs olímpicas) e pornografia infantil, Nassar era tido como um profissional exemplar e carinhoso com suas pacientes.
Na obra, conhecemos o quebra-cabeça montado pela equipe jornalística do IndyStar que investigou as denúncias. A ‘Atleta A’, supressão do nome de uma testemunha-chave num processo judicial sigiloso, é Maggie Nichols, que pertenceu ao time de Simone Biles e teve destruído o sonho de competir nas Olimpíadas do Rio de Janeiro, em 2016, depois de denunciar o médico.
Com esse estopim, os jornalistas descobriram um arquivo de queixas de assédio contra 54 técnicos e expôs diversos outros casos de abusos sexuais acobertados por anos pela Federação de Ginástica. Como nenhuma atitude foi tomada a fim de proteger esses homens e a moral da Federação de Ginástica dos Estados Unidos, evitando o escândalo por tais crimes, o número de jovens vítimas molestadas aumentava a cada ano. Caso alguém seguisse o procedimento de denúncia, provavelmente seria ameaçada (como foi o caso de Maggie) e cortada do time de elite.
Todas as denúncias eram consideradas “boatos” a menos que fossem assinadas pelas vítimas, os pais da vítima ou alguma testemunha da agressão.
Conforme os trabalhos de apuração se intensificaram, o nome do médico Larry Nassar, que atuou na equipe por 29 anos, começou a ser citado repetidas vezes. Steve Penny, o então marqueteiro e presidente da Federação, sabia das acusações e optou por proteger a sua “marca”, pois essa notícia prejudicaria os faturamentos da organização.
Engolir o choro: o que se exige de crianças em ambientes competitivos?
Desde pequenas, muitas garotas sonham voar pelos ares em piruetas e ganhar medalhas. No entanto, até o final de 1960, não se via adolescentes, e sim mulheres competindo. A mudança nas equipes olímpicas solidificou-se em 1976, quando a atleta romena Nadia Comaneci venceu as Olimpíadas com 14 anos. A partir daí, surgiu uma estética muito jovem, até infantil, na ideia de que para realizar os movimentos precisava ter pouca idade e ser pequena.
Na Romênia, crianças eram selecionadas a partir dos 6 anos, ainda no jardim de infância e ensino fundamental, para testes de flexibilidade, força e coragem. Os treinadores consideravam apropriado ter o controle total dos mais novos, desde o peso a tudo que acontecia no dia a dia. Isso não significava estar num espaço de acolhimento, confiança e amizade com os seus superiores, mas vivenciar situações de constantes humilhações e até violências físicas. Exigir a perfeição e o não acesso às emoções, como se crianças fossem robôs, traumatizou gerações de atletas que viam no famoso “engole o choro” a única alternativa para sobreviver durante os treinos. Mesmo sendo denunciados por colegas da equipe, nada aconteceu aos técnicos romenos Bela e Martha Karolyi (ela coordenou a seleção estadunidense de ginástica artística feminina). As atitudes costumam ser consideradas normais, tamanha a rigidez no esporte.
A “metodologia da crueldade” foi importada da Romênia para os Estados Unidos e, nessas condições abusivas combinadas à vontade de ser o melhor em tudo, parte da ideologia capitalista norte-americana, o terreno é mais propício para que crimes contra as crianças e adolescentes ocorram.
Daí a importância de refletir, desde a infância, sobre os riscos e consequências de negligenciar as emoções e os limites físicos e psicológicos à custa do primeiro lugar.
Cenário da violência em território nacional
No Brasil, a cada 15 minutos uma criança ou adolescente é vítima de violência sexual, segundo informações do Disque 100. Mais de 50% são crianças de 1 a 5 anos. Mesmo com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente, os indicadores de violência seguem altos. Luciana Temer, presidente do Instituto Liberta, indica que 85,2% dos autores eram conhecidos das vítimas, ou seja, esse é um crime intrafamiliar e possui um grande recorte de gênero, já que 86,9% das vítimas são do sexo feminino.
O tabu que existe acerca dos crimes sexuais cometidos contra crianças e adolescentes dificulta o diálogo aberto e envolve a crença de que educação sexual é sinônimo de relação sexual, e não é. Para Itamar Gonçalves, gerente de advocacy do Childhood Brasil, orientar esse público sobre as questões básicas, como as partes privadas do corpo, a segurança pessoal e explicar o que são situações de risco, pode fazer diferença em sua proteção.
“A genitalidade é apenas um dos aspectos a ser tratado dentro da sexualidade. Na educação sexual, se discutem pontos relacionados ao corpo, a diferença entre sexos, autoestima, respeito ao outro, sobre não permitir abusos. Uma criança sem informações básicas sobre os seus direitos pode buscar ajuda. Crianças devem ser respeitadas e têm o direito de dizer ‘não me toque’”, comenta. Contudo, sobreviver a episódios de abuso sexual requer muita coragem (e apoio) para denunciar e compreender que a culpa não é da vítima, sendo possível tratar os traumas e sequelas adquiridos com profissionais capacitados.
“O silêncio gera impunidade que, por sua vez, naturaliza e legitima a prática de violência”
“Lamentavelmente, muitas pessoas ainda acreditam que falar de violência sexual incomoda e não reconhecem esse tipo de violência como uma grave violação dos direitos de cada uma das crianças e adolescentes que as sofrem”, arremata Itamar.
O Instituto Liberta igualmente acredita que o caminho está em levar a educação sexual para as escolas, de modo que essas crianças e adolescentes compreendam aspectos relacionados à sexualidade. “Quando eu falo em sexualidade, estou falando no sentido mais amplo, que é ter conhecimento sobre violência, afeto, consenso, infecções sexualmente transmissíveis, gravidez, métodos contraceptivos, conhecer o seu próprio corpo, entre outros. O objetivo é proporcionar conhecimento e esclarecer dúvidas sobre temas relacionados à sexualidade, ligado aos direitos das crianças e adolescentes, uma vez que todos possuem direito à saúde, educação, informação e não discriminação”, comenta Luciana.
Ambas as organizações concordam que filmes e documentários que abordam a questão podem estimular o diálogo necessário para combater a violência sexual e promover a educação sobre o tema. Além de ser uma demanda de toda sociedade brasileira pensar e se engajar nesse trabalho, junto a setores (educação, turismo, esporte etc.) que lidam diretamente com crianças e adolescentes, Itamar defende que a exibição desses conteúdos deveria ser adotada em diversos espaços, pois, por meio da educação sexual, acontece a melhor forma de prevenção e apoio.
“Filmes e documentários, junto a campanhas de educação sexual na escola, são de suma importância. Nós, como um Instituto de comunicação, acreditamos que a partir do momento que a população tem conhecimento sobre a violência, pode enxergá-la e, com isso, acabar com esse crime”, deseja o Liberta.
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