Vivemos em uma sociedade competitiva, e não há mal em preparar as crianças para lidar com ela, desde que seja respeitado o maior e mais importante direito da infância: ser criança.
Quais são os limites entre a “preparação” e a “competição”? Na tentativa de preparar os pequenos para o mundo, é fácil incorrer no erro de esquecer de habilitá-las para lidar consigo próprias: pensamentos, angústias e sentimentos individuais de cada pequeno devem vir antes das necessidades do mundo.
Por isso, cada vez mais, é preciso encontrar maneiras de preservar as crianças da “adultização precoce”, da cobrança excessiva por desempenho e, principalmente, da impossibilidade de ser criança. Ou seja, antes de preparar as crianças para ter, é preciso ensiná-las a ser.
O Lunetas conversou com a equipe pedagógica do Leiturinha, formada pelas especialistas Letícia Araújo, Fernanda Veiga, Grazieta Donato e Caroline Lara, para entender quais os impactos do hiperestímulo na infância, do ponto de vista pedagógico. Confira a entrevista.
Excesso de informações x liberdade para ser criança
Todos os dias, os pequenos recebem milhares de estímulos e informações constantes. Tarefas, cobranças, orientações, atividades. Tudo isso “preenche” o tempo das crianças. E o tempo livre para descobrir, brincar, explorar e imaginar, onde fica?
Cabe aos pais, professores e responsáveis criar espaços de silêncio e tempo livre para fazer um contraponto a essa realidade. Em casa, na escola ou onde quer que seja, a criança tem o direito de apenas ser criança.
Lunetas – Quando estão em casa, em família, que recursos os pais podem usar para diminuir esse hiperestímulo e oferecer momentos de tranquilidade?
Leiturinha – Cultivar momentos em família pode ser uma boa oportunidade de interação e fortalecimento dos vínculos entre pais e filhos. A rotina também pode ser estruturada com respeito, de forma que necessidades individuais sejam acolhidas e elaboradas dentro de uma organização possível.
“É bem-vindo o momento do descanso, do silêncio, da descoberta dos gostos individuais. Uma boa leitura e uma boa noite de sono auxiliam em um sono restaurador”
Na intenção de preparar a criança, pais e professores podem facilmente recair em excessos e cobranças por desempenho constante, por vezes associando até mesmo o momento da brincadeira a uma situação em que a criança deve mostrar (demonstrar) performance. Pode falar um pouco sobre isso?
L – Há uma linha tênue que separa a “preparação” da “competição”. A competição, por si só, não deve ser tomada em um sentido pejorativo, uma vez que impulsiona melhorias em níveis coletivos e individuais. A maneira como as pessoas lidam com questões relacionadas a desempenho, sim. Há famílias e professores que tentam extrair as melhores experiências em cada situação e isso não é um problema, desde que não gere uma sobrecarga para a criança.
Se a criança consegue se sobressair em algum aspecto, é lícito que esse aspecto seja desenvolvido e estimulado, uma vez que características únicas fazem parte do nosso aparato individual. Por outro lado, o estímulo fornecido apenas em razão de uma necessidade externa ou da comparação entre pares, pode subtrair da criança a possibilidade de atuar de forma espontânea e criativa nos momentos lúdicos, como nas brincadeiras, por exemplo.
“Se a criança deixa de brincar e se divertir para tentar se sobressair, e isso gera um desequilíbrio em si e no grupo, é necessário intervir”
A competitividade é uma cobrança muito presente na educação das crianças. Porém, o mercado de trabalho, o vestibular ou um emprego melhor teriam que ser os meios, e não os fins. Como preparar a criança para ‘ser’ e não para ‘ter’?
L – Para preparar crianças para ser e não ter, é necessário trabalhar com formação de caráter, de personalidade. Os valores éticos e morais devem permear toda a vivência da criança, de forma que sejam construídos, vividos e lapidados nas interações sociais e familiares.
O desenvolvimento da autoestima saudável também é uma via importante de atenção ao “ser”. Uma vez que a criança é acolhida e amada com todas as suas características e experimenta um ambiente seguro para o seu desenvolvimento, ela tem a oportunidade de desenvolver suas potencialidades e ir atrás dos seus objetivos.
Para os especialistas, quando há sentido naquilo que se faz, a ênfase é dada no “ser” e não no “ter”.
O valor insubstituível da imaginação
Crianças constroem sentidos e significados em tudo o que fazem. A cada atividade do dia, elas conhecem novas possibilidades de interagir com o mundo e consigo mesmas. Nesse sentido, as histórias de ficção são as chaves para novos mundos, diferentes daqueles que ela já conhece.
Como o mundo de fantasia e ficção proporcionado pelas histórias influencia na preservação da infância?
L – O mundo da fantasia proporciona que a criança crie uma nova experiência cheia de criatividade, sonhos e faz de conta. Ela irá inventar, vivenciar e criar o que quiser. As histórias e os contos estimulam que a criança viva o que desejar e seja quem quiser, sem se preocupar com o mundo adulto. Os próprios pais podem estimular esta vivência e brincadeiras lúdicas inventadas a partir das histórias lidas.
A leitura, por ser uma atividade silenciosa e muitas vezes solitária, representaria uma alternativa aos excessos do mundo?
L – A leitura pode ser solitária para uns, compartilhada para outros, envolvente para muitos, tediosa para alguns. Ela pode ser experimentada de forma individual, mas não necessariamente solitária. A leitura pode informar, emocionar, provocar sentimentos e gerar formas alternativas de entendimento, expressão e inserção no mundo.
“Conforme a criança vai crescendo, a leitura se torna mais autônoma e passa a percorrer caminhos mais individuais, mas não necessariamente solitários. Estar consigo mesmo pode ser um momento prazeroso”, defende a equipe de pedagogas do Leiturinha.
Como a leitura compartilhada na infância cria esse valor na criança, de valorizar os momentos consigo mesma?
L – Dizem que quem lê, nunca está sozinho, pois há sempre um autor, uma personagem, uma história a ser escolhida, vivida e desbravada. São diversas formas de companhia e interação. Quando um membro da família se dispõe a ter uma experiência de leitura compartilhada com uma criança, ele está oferecendo mais do que tempo, amor e atenção. Ele está oferecendo a oportunidade de construir uma relação entre as pessoas – e entre as pessoas e os livros.
Como iniciar o interesse pela leitura de forma natural, sem forçar os limites de aprendizado de cada criança e respeitando o tempo de cada uma?
L – O exemplo é uma boa alternativa. Pais leitores normalmente estimulam o hábito de leitura nas crianças porque faz parte da rotina da casa: leem por prazer e diversão. A leitura é vivenciada como uma experiência gostosa do dia a dia, e também como possibilidade de informação, integração e troca de experiências. Possibilitar que a criança descubra seus temas de interesse e, então, oferecer a oportunidade da leitura, certamente é um bom caminho.
“Outra alternativa é incrementar a rotina com passeios a bibliotecas e livrarias, de forma que a criança possa ter uma certa autonomia para escolher e sentir as obras que mais lhes interessam”.
* Este conteúdo foi produzido em novembro de 2016, em parceria comercial com o Leiturinha.
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