Diante do mito da rivalidade entre mulheres que costuma nos rondar desde a infância, o livro “Amigas que se encontraram na história” busca enaltecer a amizade feminina, mostrando a cumplicidade que existe entre elas. As autoras Angélica Kalil e Amma – também duas amigas – se debruçaram sobre histórias de mulheres emblemáticas e desconhecidas que, em comum, romperam com o que se esperava delas, vendo umas nas outras parceiras, não adversárias.
Do encontro entre a rainha Elizabeth I e a pirata Grace O’Malley, que viveram no século XVI, até Malala e Emma Watson, duas jovens que defendem o direito de meninas frequentarem a escola, vemos que a suposta rivalidade entre as mulheres serve mais é para nos afastar dos espaços que gostaríamos de ocupar. Entre as 20 mulheres retratadas, há descobertas da dupla Annie Jump Cannon & Cecilia Payne-Gaposchkin sobre de que são feitas as estrelas e, a partir da amizade entre a sambista Ivone Lara, que era enfermeira de formação, e a médica Nise da Silveira, vem a revolução do tratamento da saúde mental.
“São histórias muito diversas, cada uma tem sua peculiaridade e acho que é isso que faz com que o livro dê a dimensão da força da união entre amigas, algo que ultrapassa o tempo e o espaço”, explica Angélica, responsável pela pesquisa e redação das histórias. Já para Amma, fotografias, filmes, reportagens e pinturas lhe serviram de inspiração e, só depois de muitos testes, ela chegou ao traço que retrataria a sororidade: feito manualmente com guache e lápis de cor, com uma paleta de cores diversa, assim como a vida e os feitos dessas mulheres.
O Lunetas conversou com as autoras sobre o processo criativo de trazer essas amizades para leitores de todas as idades, reunidas nesta obra que ganhou o prêmio Jabuti de melhor livro juvenil, em 2021.
Leia a entrevista com Angélica e Amma
Lunetas – Como surgiu a ideia de contar histórias de mulheres que eram amigas?
Angélica – A ideia foi surgindo aos poucos a partir da leitura do livro “Grace O’Malley – a pirata invencível”, de Heloisa Prieto e Victor Scatolin, e de um episódio da série “Cosmos”, com o Neil deGrasse Tyson, em que aparece a história da astrônoma e astrofísica Cecilia Payne-Gaposchkin. A partir daí, meu olhar para amizades entre mulheres ficou mais atento. Dividi a ideia com a Amma, ela gostou e seguimos em frente!
E como foi a busca por essas mulheres? Teve uma “primeira” dupla como ponto de partida?
Angélica – A primeira dupla foi Elizabeth & Grace, que teve vários testes de formato de texto, estrutura narrativa e ilustrações; as outras duplas tiveram diferentes tipos de pesquisas. Quanto mais recortes de apagamento, mais difícil foi achar as histórias, como no caso das amigas indígenas aimarás Bartolina & Gregória.
Vocês descrevem a pesquisa como “uma lanterna que joga luz em pequenos trechos de uma floresta escura”. Como foi esse processo?
Amma – A Angélica me trouxe as histórias prontas. Mas fui atrás de outros elementos que me ajudassem a pensar as imagens. Para ilustrar o primeiro volume do “Amigas”, levei quase um ano. Já o segundo volume foi mais rápido, cerca de cinco meses. Busquei fotografias, filmes e até músicas para me inspirar.
Quais foram as semelhanças encontradas nas histórias dessas mulheres?
Angélica – Todas as personagens romperam com o que se esperava delas e viram nas outras mulheres aliadas, e não adversárias. Mas essas duplas viveram em épocas e lugares diferentes, são histórias muito diversas, cada uma tem sua peculiaridade e acho que é isso que faz com que o livro dê a dimensão da força da união entre amigas, algo que ultrapassa o tempo e o espaço.
Por que é importante ter acesso a essas histórias que falam de apoio, cumplicidade, trocas entre mulheres…?
Amma – O livro não busca ensinar nada a ninguém. Mas acredito que é uma forma de nos lembrar que também podemos realizar importantes feitos.
Angélica – Acho que é importante para perceber que as mulheres também são protagonistas da história, e não eternas coadjuvantes. E que não viemos ao mundo para competir pelo olhar masculino, como se quer que a gente acredite.
Como foi para vocês vencer o Prêmio Jabuti? Vocês imaginam que a sororidade pode ter sido algo que saltou aos olhos dos jurados em “Amigas”?
Amma e Angélica – Foi como um incentivo a continuar. Estar entre os 10 finalistas já nos deu tanta alegria, e quando levamos o prêmio tivemos a certeza de que estamos no caminho certo.
Amma – Eu não sei dizer bem o que poderia ter chamado atenção. Talvez a troca que propusemos no livro entre o gênero informativo e o literário, talvez a linguagem e também a temática.
Angélica – Acho que foi a sororidade, que abordamos de uma maneira afetiva, e também a diversidade que está no livro e salta aos olhos através das ilustrações maravilhosas da Amma.
O que as duplas de amigas retratadas no volume 2 trazem aos leitores?
Amma e Angélica – Trazem assuntos urgentes e atuais como o racismo ambiental, a sororidade e a garantia dos direitos das mulheres. São mulheres bem revolucionárias!
Há planos para mais livros dentro dessa temática? Talvez um terceiro volume…
Amma – Estamos produzindo nossa segunda história em quadrinhos juntas, com um viés mais lúdico. Mais uma vez vamos contar a história de algumas mulheres, mas agora serão apenas brasileiras.
Angélica – Sempre tenho vontade de dar spoiler! Estamos bem empolgadas com esse projeto e depois dele tem outro (rs). Uma listinha para o “Amigas 3” também já está sendo feita, vai que…
Vocês têm recebido retorno sobre a repercussão dos livros entre os leitores e suas experiências de leitura?
Amma – Sim! É bem legal ter o retorno dos leitores. O interessante é que a maioria são mulheres. Muitos comentários sobre não conhecerem algumas amigas. Um retorno que me deixou muito feliz foi de uma criança com deficiência que colocou o “Amigas” no top 5 de seus livros favoritos e que se identificou com a Frida Kahlo, por ter sido representada no livro como a mulher PCD que foi.
Angélica – Hoje mesmo uma grande amiga me enviou uma mensagem falando o que tinha achado do livro e a dupla que mais tocou seu coração. São retornos muito carinhosos e empolgados de mulheres de todas as idades, isso é muito bonito de ver.
O que ficou para vocês sobre todas essas amizades que vocês praticamente trouxeram a público, porque foram pouco conhecidas?
Amma – Que se a amizade entre mulheres fosse mais incentivada, ao invés de rivalizada, poderíamos estar em outros lugares hoje.
Angélica – Que amigas mudam o mundo!
Conheça os livros!
“Amigas que se encontraram na história: volume 1”, de Angélica Kalil e Amma (Editora Seguinte) São dez relatos de amizade entre mulheres que impactaram o mundo em várias épocas. São mulheres negras, indígenas, latinas, brancas, asiáticas. Jovens, adultas e idosas. Uma cadeirante e uma surda. Algumas famosas entre as feministas de hoje, outras que viveram em um tempo em que a palavra “feminismo” nem existia. Mas todas têm algo em comum: a coragem de lutar por seus sonhos e a admiração por suas amigas. O livro é um convite para repensarmos as relações de gênero e uma fonte de inspiração. Afinal, juntas, somos mais fortes. Juntas, fazemos história.
Amigas retratadas: Elizabeth I & Grace O’Malley; Bartolina Sisa & Gregoria Apaza; Qiu & Xu; Annie Jump Cannon & Cecilia Payne-Gaposchkin; Chavela Vargas & Frida Kahlo; Ivone Lara & Nise da Silveira; Ella Fitzgerald & Marilyn Monroe; Mae Jemison & Nichelle Nichols; Emma Watson & Malala Yousafzai; Angélica Kalil & Amma.
“Amigas que se encontraram na história: volume 2”, de Angélica Kalil e Amma (Editora Seguinte) Neste segundo volume, conhecemos mais dez histórias, desde a Antiguidade até os dias atuais. Também carimbamos nosso passaporte em viagens para novos destinos, como Vietnã, Rússia, Austrália, Dinamarca, Suécia e Uganda. Uma inspiração para que crianças sonhem com uma sociedade mais humana, em que diferenças não significam desigualdades.
Amigas retratadas: Tapputi & Ninu; Nhi Trung & Trac Trung; Olympe de Gouges & Sophie de Condorcet; Alexandra Kollontai & Clara Zetkin; Gerda Wegener & Lili Elbe; Faith Bandler & Jessie Street; Elizeth Cardoso & Sarah Vaughan; Lorraine Hansberry & Nina Simone; Cori Gauff & Naomi Osaka; Greta Thunberg & Vanessa Nakate.
Leia mais
“Foi no trabalho que se conheceram. Ivone era enfermeira e Nise a nova médica que chegava ao Centro Psiquiátrico Nacional. […] Muitas pessoas eram abandonadas ali pela família e recebiam um tratamento extremamente cruel, até choque levavam. Aquilo não parecia nada certo. Elas preferiram dar outros remédios para as pessoas chamadas de loucas: arte e afeto. Nise então organizou um tipo de ateliê e contou com Ivone para o sucesso do plano.” – trecho da história de Ivone Lara e Nise da Silveira