Quando Ailton Krenak entra em uma sala, as pessoas se organizam: algumas mudam de postura, outras abrem um sorriso, muitas fecham os olhos. São sinais de respeito, reverência, contemplação, como se soubessem que está para acontecer ali uma troca potente de saber e também de energia. Quem já teve a oportunidade de estar com o ambientalista, escritor e líder indígena, sabe que nada disso é exagero.
Natural de Minas Gerais e descendente da etnia Krenak, ele traz consigo uma sabedoria ancestral que é maior do que os mais de 60 anos que carrega nas costas. Seu corpo, seus gestos e sua expressão facial trazem as marcas de toda uma cultura dos povos originários, absorvida de geração em geração. É sobre esse tipo muito requintado de aprendizado que ele fala em seus encontros, um processo que não se dá apenas na escola e nem em função de uma única figura de poder, e sim proporcionando a humanidade e inteireza de cada sujeito.
Ailton Krenak no Abril Indígena
Na última semana, Krenak esteve no Sesc Consolação, no centro de São Paulo, para participar da programação do Abril Indígena, ciclo de atividades promovidas na capital e no interior para difundir os saberes indígenas. O tema do encontro foi intergeracionalidade. Em uma tarde chuvosa de sexta-feira, ele falou para uma plateia de cerca de 50 pessoas sobre como a relação entre crianças e idosos na cultura indígena. Mas acabou sendo muito mais do que isso.
Ailton Krenak falou sobre a representação da criança e da infância, sobre as diferentes percepções da vida do índio em relação ao homem branco e urbano, sobre educação, família, afeto, política, meio ambiente e muitos outros assuntos. O Lunetas acompanhou o bate-papo, e nesta matéria contamos um pouco do que ouvimos por lá.
Crianças e idosos: uma troca valiosa
As crianças Krenak almejam ser velhas. É desse ponto que partiu a conversa. Segundo Krenak, a relação de descartabilidade que muitas vezes o homem atribui aos mais velhos vem de uma lógica industrial da vida, ou seja, a de que nascemos para ser úteis para uma determinada função. Na cultura indígena, em que a sabedoria é algo acumulado pela experiência e pela transmissão oral de conhecimento, acontece algo muito diferente. Não por acaso, existe até um conceito que nomeia o que simboliza a velhice. “Xeramoi” significa “pessoa que sabe“.
“Você só fica sabendo quando é velho; quem é jovem ainda não sabe de nada, porque não viveu bastante”
A partir daí, fica mais fácil supor porque nas aldeias é tão comum assistir a trocas intergeracionais, em que crianças e idosos convivem e compartilham saberes, de forma horizontal, genuína e interessada. É dessa forma que o conhecimento adquirido por cada um ganha permanência e duração ao longo do tempo.
“A maneira de acessar conhecimento nas tradições indígenas é vivendo, e não estudando. As histórias só podem ser contadas por quem as viveu”
“Esse ‘ficar antigo’ é um atributo que todo mundo quer em uma aldeia indígena. As pessoas querem viver e ter muita história pra contar. Ficar velho é um status que se conquista”, explica o professor. “Nessas culturas, envelhecer é a aspiração de todo menino. Ter antiguidade e conhecimento é ter importância naquela sociedade, que dá um valor muito claro à experiência vivida”, conta.
Ailton Krenak falou também sobre o valor histórico dado à memória dos indivíduos na cultura indígena. De acordo com ele, aquilo tudo de que cada pessoa se lembra é o que ela vai passar adiante, e por isso tem um valor inestimável. Nas grandes cidades, e mesmo nas menores nas quais a vida é construída em torno da lógica da produção e da economia, a memória foi substituída por aparatos tecnológicos.
“Como diria Davi Yanomâni ‘Os brancos escrevem livros porque a cabeça deles é cheia de esquecimento’, mas os povos indígenas acreditam na memória”
Brincando, ele disse que o próprio nome que a modernidade decidiu dar ao “ficar antigo” – como ele mesmo diz – é sintoma de como ela é vista. “Na sociedade ocidental urbana, numa correção política da linguagem, decidiram chamar de terceira idade.
“A terceira idade deveria ser chamada de curiosidade. Porque as pessoas mais velhas já viveram o suficiente para contar o que sabem”
Krenak explica que os ritos são fundamentais para a formação de um sujeito nas comunidades indígenas, e conta que para cada etnia essa concepção é encarada de uma forma diferente.
“A maneira como os povos indígenas experimentam o que é nascer, constituir uma identidade, passar pela experiencia de ser criança, jovem e adulto. Isso não desenvolve da mesma maneira para todos os povos.
“A experiência de nascer e começar a construir a pessoa é toda feita de rituais. São os rituais que formam a pessoa como algo vivo”
No entanto, ele explica que a necessidade de definir períodos específicos da vida em classificações fechadas, da forma como fazemos, é algo que não faz parte da prática dos índios.
“As categorias infância, juventude, adolescência, vida adulta, etc, são interpretações culturais. Cada um de nós pode viver como achar melhor”
“Essas categorias são recentes, porque no tempo dos nossos avós não era chamado assim, certamente eles achariam isso uma extravagância. Porque eles tinham certeza de que eles nasceram para nascer uma vida toda; uma vida coletiva e compartilhada, de natureza única. O dom da vida é tão maravilhoso e diversificado como as estrelas do céu, e todas brilham na sua intensidade e na sua antiguidade, algumas delas com bilhões de anos”, defende Ailton.
A escola promove liberdade?
“A consciência do colonizador era de que a liberdade é um risco”, disse Krenak, referindo-se aos primeiros registros históricos sobre os povos indígenas, que os caracterizava como selvagens por viverem na contramão do que a sociedade urbana entende como organizada. Para ele, essa é uma máxima que ainda perdura em nossos tempos, a de que ser livre é nocivo, e por isso há tantos projetos de cerceamento de liberdades em andamento pelo mundo afora.
“Todos nós temos o direito de nascer em uma cultura que vive a experiência da vida mais livre dos controles sociais”
Talvez seja por isso que as primeiras literaturas e registros históricos sobre os povos indígenas mostram o índio como um selvagem. Aquele selvagem que a imaginação cultivou para nos manter longe e desaparecido da vida do homem branco não é nem criança, nem jovem, nem velho, e sim uma coisa abstrata. Isso torna a vida algo destituído de realidade. Só mais recentemente é que se começou a registrar a cultura indígena a partir de outro ponto de vista, que é a da transmissão de conhecimento, do convívio, do aprendizado entre os mais velhos”, pondera.
Nesse sentido, o pesquisador chama a atenção para o fato de como essa lógica se aplica não só a noção que até hoje muitos ainda sustentam sobre o que é ser índio, mas também à educação, que forma as bases de identidade do sujeito na sociedade moderna. Ailton questiona o modelo de escola a que submetemos as crianças e jovens da cidade, fazendo uma retomada cultural de como as culturas indígenas entendem o processo de aprendizagem.
“Nasceu um imaginário de que o índio era preguiçoso e precisava ter seu tempo ocupado. Que tal coloca-los para plantar soja, para garimpar, para fazer mineração e ficar rico? O que eles fazem quando não estão fazendo todas as coisas incríveis? Eles estão vivendo, experimentando a vida, convivendo com seus filhos, percebendo o tempo. Os meninos aprendem um com o outro”.
A partir daí, ele discute a lógica da produtividade que cultivamos nas sociedades pós-industriais, e relaciona com a forma de apreender o trabalho; consequentemente, segundo ele, esse entendimento afeta o modo como utilizamos o tempo livre, e o dedicamos ou não ao convívio familiar e a criação de laços comunitários. Para ele, é o entendimento de que o trabalho deve ser uma prioridade um dos principais responsáveis pelo desenraizamento das pessoas de seus vínculos ancestrais.
“O mito de que o trabalho é o viver foi criado. Ele condiciona nossos corpos, limita nossa mente, e nos convence a achar que o trabalho edifica”
“O jeito de ficar vivendo perto um dos outros é o que mais ocupa o tempo dos índios. O trabalho só acontece quando o interesse comum mobiliza o coletivo para fazer alguma coisa. Essa maneira de viabilizar o lugar de viver, a comida e os cuidados é autônomo, ou seja, dispensa as pessoas de ter que viver subordinado a um patrão, por exemplo. Assim, os indígenas vivem à parte dessas categorias que o mundo do trabalho criou”, explica.
Entender como surgiram as escolas indígenas, e de qual necessidade nasceu a sua motivação, nos ajuda a questionar a forma como enxergamos a educação hoje. Ailton Krenak problematiza a escola enquanto espaço físico, que mais aprisiona do que liberta.
“A transmissão de conhecimento de geração em geração fez com que nós chegássemos ao século 21 com o número de 305 povos e aproximadamente 180 idiomas falados . Então, tem um sistema de mundo que inclui um movo de pensar a vida e a educação. Até pouco tempo, nem escola tinha, e só aceitou a escola por uma imposição daqui de fora, pelo entendimento de que as crianças indígenas também precisavam aprender a ler e a escrever. Mas como é que conseguimos fazer com que as crianças continuassem a transmissão oral do conhecimento se elas forem cooptadas pela escola? Então, começamos a criar maneiras de despistar a escola. Por exemplo, a condição de que escolas seriam dentro das aldeias, os mestres seriam indígenas, nossos tios e avós que poderiam transmitir o que sabem”, conta.
“Toda hora uma secretaria de ensino ou o ministério da educação diz que desse jeito não dá mais, que as crianças estão fazendo o que querem. Eles tem que ficar presos e aprender. O incorrigível desejo de liberdade faz os meninos fugirem. Há umas pedagogias muito bonitinhas que nos convencem de que assim as crianças vão conseguir criar comunidades”.
“O que as crianças aprendem quando ficam presas? A fugir”
Para onde vamos?
Ouvir um representante indígena com a experiência acumulada de um Krenak falar traz um entendimento imediatado de que é preciso transformar muitas das lógicas de mundo nas quais estamos inseridos. Quanto colamos esse pensamento à educação – sobretudo infantil, por investirem nas futuras gerações que governarão o país -, a responsabilidade é grande, mas nem só a escola é colocada em xeque.
“Nós fomos industrializados, e durante esse processo não tivemos a capacidade de parar e se perguntar se o modo como fazíamos essa transformação era o melhor”
Ao ser questionado por alguém da plateia sobre como andam os povos ribeirinhos que vivem no entorno do Rio Doce e do Rio Paraopeba, recentemente destruídos em função do rompimento das barragens da Vale em Mariana e Brumadinho, Ailton Krenak faz uma crítica a todo um sistema econômico. Antes, ele se certifica de contar para todos os que estavam ali presentes que sua cultura entende os rios que morreram como parte da família.
“O Rio Doce, onde o homem branco jogou lama de mineração, tem nome, ele é uma pessoa, nós o chamamos de Watu e cantamos para ele, agradecendo pela comida e pelo remédio que ele dá. Os brancos pensam que um rio e uma montanha são coisas onde se pode jogar lama e construir ponte. Muitos de nós adoeceram, porque não viram mais sentido de viver ao lado de um rio morto”. É aí que Krenak pontua a corresponsabilidade de toda a sociedade para cuidar dos recursos naturais que garantirão a vida das futuras gerações. A intergeracionalidade, segundo ele, é uma ferramenta potente para educar as pessoas sobre essa importância.
“Construir relações entre as gerações é fazer um compromisso com a vida que vai existir depois de nós”
Krenak chama todo esse processo de “economia do desastre”, e provoca a pensar sobre algo que deve ficar no radar de quem convive e/ou trabalha com crianças, a alienação do território. Se a criança é educada desde cedo a honrar a terra e a mata, e não a enxergá-las como terreno de apropriação e crescimento econômico, a preservação desse patrimônio é consequência.
“O homem cria um desastre, e depois maneja uma grana bem grande para consertá-lo. Foi o que aconteceu em Mariana e em Brumadinho. Eles contrataram uma empresa que afirmou ter gasto um bilhão e 800 milhões para dar assistência às famílias ribeirinhas, mas é mentira. O que eles fizeram foi contratar empreiteiras e consultores que ficavam voando pra lá e pra cá pra dar consultoria”, critica.
“A palavra ancestral invoca para cada cultura diferente que nós somos um vínculo com quem vivem antes de nós. Nós seremos ancestrais para quem vai vir muito depois de nós. Esse mundo tem que durar, a terra não é uma festa que termina e acabou, ela é nosso jardim por onde precisamos passar vivendo com aprendizado, que demora uma vida inteira. Esse aprendizado é muito melhor aprendido quando tem mais gente envolvida”.
Se estivéssemos sadios, não estragaríamos o nosso redor foi um das questões mais destacadas no encontro. Esse ambiente interior está muito relacionado com o universo da cultura de cada povo. Afinal, se temos povos que viveram centenas de anos nesta mesma terra e não estragaram o ambiente, é possível viver de outro modo.
“Há um ambiente que percebemos como natureza e outro que é interior, em cada um de nós. O estrago que fazemos do lado de fora aparecem primeiro do lado de dentro”
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