Logo que fui alfabetizada, tomei gosto por livros de lendas brasileiras e histórias em quadrinhos. Passava horas do meu dia envolvida com o enredo dos personagens, somado à imaginação sem barreiras, comum às infâncias.
Lendo, eu compartilhava meu mundo e me aproximava daqueles personagens, trazia cada um para meu cotidiano e frequentava o universo deles. Foi assim que me encontrei com minha primeira ídola: uma menina que vivia em um bairro parecido com o meu e tinha um grupo de amigos na rua de casa. Ela era altiva, tinha uma voz forte contra a traquinagem dos meninos e, ao mesmo tempo, era sonhadora e divertida. Foram com essas últimas características que me identifiquei; as outras me causavam admiração, ainda que mais distantes. Essa personagem ganhou um pôster no meu quarto, próximo à minha cabeceira, onde permaneceu uma boa temporada trajando uma capa de super-heroína!
A diferença central era a cor da nossa pele. Minha primeira ídola tinha a pele clara, assim como toda sua turma e também a maioria das referências positivas que aparecia nas minhas leituras de infância. Isso não foi um impedimento para que eu gostasse cada vez mais das histórias, criasse uma relação de amizade com todos os personagens e aprendesse muito com eles. Mas eu também me acostumava com poucos personagens negros presentes nas narrativas lúdicas e eles fizeram muita falta!
O encontro com o meu primeiro herói negro em “Pantera Negra”
Eis que, em 2018, fui ao cinema assistir “Pantera Negra”, o filme. No meio da exibição, impactada por tudo o que via, os pensamentos me levaram aos questionamentos: Quantos dos meus ídolos se pareciam fisicamente comigo? Como eram aqueles que chamei de heróis ou heroínas, do mundo ficcional? Quais eram as suas histórias? Quem eram seus amigos?
Nenhum herói da minha infância se parecia comigo.
Não me refiro somente à cor da pele, mas o quanto o imaginário construído, desde a infância, em torno de pessoas negras é marcado por ausências: ausência de família, de alegria, de beleza, de estrutura, de capacidade, de inteligência. Em sua maioria, as narrativas contemplam a negritude pela falta – inclusive de humanidade – e essa estrutura costuma ser normalizada.
O cenário está mudando, graças aos movimentos negros, indígenas, às ações midiáticas, às políticas de ações afirmativas, entre outros, que mostram que é possível (e necessário) contar novas histórias, valorizando as narrativas que os outros, os diferentes, também querem fazer de si e de seu povo, e que sejam compreendidas, apreciadas e difundidas.
Da menina que lia quadrinhos para uma entusiasta de Wakanda foram cerca de 25 anos. Pude enfim ver uma obra cinematográfica de porte imenso, do gênero de ação e aventura, colocar em primeiro plano, como heróis e heroínas, pessoas negras, em continente africano, numa trama que envolve cultura, humor, tecnologia, tensões, inteligência, romance, ciência, dinheiro, saberes compartilhados, conflitos pessoais e familiares que são comuns à maioria das pessoas, inclusive a negras e negros.
Afinal, pessoas negras também gostam de se ver representadas em sua diversidade.
A comoção (legítima e sensível) em torno da morte prematura de Chadwick Boseman na última sexta-feira (28/8), aos 43 anos, em decorrência de um câncer no cólon, nos mostra o quanto referências que narram a negritude em sua potência, e não apenas em seu degredo, são importantes para crianças e adultos que, assim como eu, cruzam boa parte da vida sem um herói ou heroína de pele escura que não sejam de sua própria família e que possam habitar seus imaginários.
Para mim, o rei T’Challa do filme “Pantera Negra” encanta sobretudo pelo talento natural com que incorpora o personagem, pela relação carinhosa que tem com a irmã, e a importância que ele dá às relações familiares e à vida em comunidade. Além, claro, do entendimento compartilhado de que aquela estética sofisticada é também uma ação política simbólica que não muda a realidade, mas amplia imaginários, humaniza e valoriza o afeto entre pessoas que não costumam ser vistas da forma e no lugar que ocupam “Pantera Negra”. Tais características ficam ainda mais fortes e bonitas quando traduzidas pelas palavras e ações de Chadwick. Ele, como um homem negro, conhecedor de si e do meio onde está inserido, assume com propriedade sua consciência racial e ação política, questionando papéis e propondo outras narrativas em torno de personagens pensados para ele.
É um convite para humanizarmos a negritude que, assim como outras formas de existência, também é contraditória, poética, violenta, sonhadora.
Que personagens como T’Challa preencham corações e mentes de crianças e adultos por um longo período e possam fazer emergir características auspiciosas em detrimento de adjetivos pejorativos, como o Saci Pererê ou o Curupira, por exemplo, que, provavelmente, foram diminuídos em sua potência por narrativas estigmatizantes e estereotipadas.
Sueli Carneiro nos ensina que “racismo é coisa de profissional, é estruturante para o exercício de poder contra quem o racista julga ser inferior”. Portanto, na tentativa de barrar lógicas que operam desta forma em todas as instâncias da vida, aproveito para saudar a vida, obra e existência de pessoas negras que, assim como Chadwick, preenchem cada vez mais as faltas, ocupando-as e transformando-as em narrativas sobre a negritude. Salve Conceição Evaristo e sua escrevivência, repleta de subjetividade quando fala de si, de mim e de nós. Salve, salve, Cidinha da Silva e sua crença verdadeira e autoral de que a literatura expande nosso diálogo com o mundo. Salve Lázaro Ramos e sua rima que embala crianças e adultos!
A presença física, artística e política de Chadwick Boseman já está fazendo falta. Reconhecer e prosperar essa presença vai ao encontro da etimologia da palavra comum (co-munus) que se relaciona com a reciprocidade, a dádiva mútua, que aproxima pessoas, negras ou não, comprometidas com a coletividade e a capacidade de transformarem, juntas e juntos, o presente e o futuro, ressignificando o passado.
Que Wakanda esteja em festa e que essa energia possa ser sentida também por aqui.
** Este texto é de exclusiva responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Lunetas.
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