Hoje, escrevo como quem procura palavras. Como quem sente a onda de notícias bater forte, até quase perder o fôlego, e depois resta um tanto náufraga, um tanto estúpida. Hoje, escrevo como quem tem sido atravessada, diariamente, pelo horror de ter a filha e o pai escolhidos para morrer. Em várias partes do mundo, em protocolos pensados por comitês de ética, em decisões tomadas no limite, são eles os escolhidos para descarte. Ele, idoso; ela, pessoa com deficiência. Eles, meus afetos, vidas que valem menos, posto que não são percebidas como produtivas, não geram dinheiro como esperado. Por essa medida – a da mercadoria – meu pai e minha filha podem ser deixados para trás.
Não há qualquer novidade nesta premissa, vivemos esta ameaça-realidade cotidianamente. O que há de novo é que tais decisões, em tempo de pandemia, denunciam nosso fracasso, sem, tampouco, anunciar qualquer perspectiva de mudança. Ao contrário, tais decisões nos colocam em ainda maior risco de desumanidade.
Fechamos todas as portas, mas seguimos boquiabertos, a alma escancarada assistindo o que acreditávamos ser a “normalidade” se desmanchar. Fácil dormir, exausta pela lida que requer tanto e de maneiras antes inimagináveis. Difícil acordar para a constatação de que o mundo que está assim, agora, também esteve assim ontem, anteontem. Impossível explicar isso à minha filha, poupar disso o meu pai.
A pandemia só realçou aquilo que há muito nos faz padecer: a desigualdade social.
É ela, a desigualdade, que torna razoável admitir que mortes que poderiam ser evitadas entrem na contabilidade. Não só da pandemia, mas das chacinas, dos massacres, da fome, do desemprego, do corte de investimentos em saúde, em educação, em cultura, em pesquisa, do esfacelamento dos direitos trabalhistas, da aposentadoria. A vulnerabilidade não chegou com o vírus. Há um projeto de morte em curso, e é nesse terreno que a Covid-19 se espalha.
A pandemia é um espelho difícil de encarar. É democrática, está percorrendo o mundo inteiro, todas as classes sociais. Mas, aqui, ganha contornos verde-amarelos: a primeira morte foi de uma mulher negra, 63 anos, moradora de uma rua sem calçamento, no subúrbio do Rio de Janeiro, que trabalhava há 20 anos como doméstica no Leblon, bairro nobre carioca que tem o metro quadrado entre os mais caros do mundo. Lá, possivelmente pegou o vírus da patroa, que, recém-chegada de viagem à Itália, não avisou à empregada que estava doente e a manteve trabalhando.
Acessamos então uma compreensão importante: somos todos suscetíveis à contaminação pelo vírus, mas a vulnerabilidade é maior entre aqueles que o dinheiro já decidiu que devem ser abandonados, porque suas vidas estão estruturalmente desprotegidas. Pobres, trabalhadores informais, população em situação de rua, mulheres, negros, idosos, pessoas com deficiência – o grupo de risco, aqui, não é determinado apenas pela idade ou por condições de saúde preexistentes.
São corpos sem corpo, vozes sem voz, excluídas e culpabilizadas pela própria exclusão.
O grupo de risco, aqui, é contabilizado pela régua da desigualdade e da negação de direitos, e corresponde a mais da metade da população brasileira. É um mundo de gente, mas são também minha filha e meu pai.
É neste contexto que me faltam palavras. Menos pelo espanto diante das circunstâncias, mais pelo pequeno alcance desses gestos curtos, diante das injustiças abissais que nos trouxeram até aqui. Quero mesmo silenciar. Não por conivência ou por impotência. Mas para ouvir o grito de todos estes que estão à margem, expostos, vulneráveis, sendo repetidamente destituídos de humanidade. Ouvir a voz que está à margem e acessar a perplexidade. Permitir que estes rostos nos sacudam numa perspectiva ética, que essas vozes irrompam e nos desfaçam do pensamento que nos trouxe até aqui, desordenem a ordem, produzam mesmo perda de palavras, de modo a tornar outras possíveis.
Trancados em nossas casas, ansiamos por viver um tempo outro, mas é preciso que também possamos construir um outro tempo.
Um tempo em que a perda de fronteiras não seja experimentada na perspectiva de um vírus, mas no alcance da luta que suprime desigualdades. Um tempo em que esse abraço que hoje guardamos alcance as margens e possa senti-las, ouvi-las e viver com elas. É nesse tempo que quero poder abraçar de novo, também, minha filha e meu pai.