Gabriela tem oito anos e vai à escola todos os dias. Quando chega lá, esbarra logo na mochila do amigo João, que estampa diferentes versões da Galinha Pintadinha. Antes mesmo de abrir o caderno, onde está o rosto da Luna, a menina cientista, vai cruzar o olhar com muitos heróis e heroínas da TV por assinatura, nos mais diversos tamanhos, cores e tecidos. Doras Aventureiras e outras dezenas de personagens desfilam à vontade em apontadores, borrachas, lápis, estojos e lancheiras. Nesta matéria sobre economia na volta às aulas, vamos refletir sobre a questão do consumismo atrelado à educação.
Quando volta para casa, Gabriela pergunta: “por que meu material não tem personagens?” O adulto responsável por ela, culpado pelo pouco tempo que tem para passar com a filha, recalcula as contas do mês para comprar a mochila mais bonita e reluzente da vitrine em sua próxima passada pelo shopping.
A história contada aqui em cima é de mentirinha, mas é a rotina comum de muitas famílias, bombardeadas todos os dias pela publicidade dos produtos que invadem o dia a dia das crianças até mesmo em seu espaço seguro, a escola. Qual o impacto disso para os pais? Uma lista de materiais que pode triplicar de preço, além da responsabilidade de educar uma criança muito mais propícia ao consumismo – afinal, o personagem deste ano já será outro no ano que vem.
Por que materiais escolares custam tão caro? O que pode e não pode pedir em uma lista de material de escolar? Como as crianças respondem a possibilidades de consumo sustentável, e como conversar com elas sobre a questão?
Para pensar sobre essas e outras questões, o Lunetas entrevistou pais, alunos e professores para entender quais os caminhos possíveis para gastar o mínimo possível nesse período do ano. Conversamos também com o programa Criança e Consumo e o Movimento Infância Livre de Consumismo para saber quais os impactos nocivos dos excessos de consumo na infância.
Como a publicidade infantil entra na escola?
O Lunetas levou a pergunta acima ao programa Criança e Consumo. A advogada Livia Cattaruzzi responde e explica como pode ser nociva a associação entre a experiência escolar e o estímulo ao consumismo.
“Nesse período de volta às aulas, muitas empresas de materiais escolares investem alto em publicidade direcionada a crianças. Assim, é importante acompanhar o que está sendo visto pelas crianças em canais de TV, redes sociais e plataformas de vídeos, e conversar com elas a fim de orientá-las sobre a real finalidade da publicidade. Ainda, ensiná-las a avaliar a necessidade de um produto antes de adquiri-lo, e estimulá-las a usar novamente estojos, lancheiras e mochilas que estejam em bom estado”, afirma Livia.
“Ações comerciais dentro do espaço escolar são ainda mais difíceis de serem identificadas como publicidade pelas crianças, pois se confundem com o momento de aprendizagem”
Assim, diante do papel fundamental dos educadores na formação das crianças, é importante que as instituições de ensino abordem o tema do consumismo e não abram seus espaços às empresas e a qualquer tipo de publicidade.
Consumo sustentável na volta às aulas
As pequenas GiovanaAntonella e Luiza, de sete anos, que estão no primeiro ano do ensino fundamental, iniciaram uma pequena revolução em sua sala de aula. Tudo começou quando Giovana trouxe de casa um caderno reaproveitado, com uma capa customizada que ela mesma fez, com adesivos e recortes.
“Eu gosto de desenhar, mais do que comprar uma coisa pronta. Eu acho isso um pouco mais divertido do que comprar um caderno que já vem cheio de desenhos”, diz a pequena.
Percebendo o interesse dos outros estudantes, a professora das meninas, Márcia Murillo, resolveu aproveitar a iniciativa para conversar em aula sobre o que aquilo representava.
Foi aí que outros colegas notaram como poderia ser legal ter um objeto totalmente personalizado, diferente de todos aqueles que são vendidos nas lojas. Luiza também colocou a ideia em prática, e fez um caderno todo seu com motivos de passarinhos, inspirados em Nina, sua calopsita de estimação.
“Da mesma forma que os personagens e a moda do momento vão tomando conta das crianças, atitudes como essa também podem influenciar para o bem”, defende a professora.
Na casa da Giovana, ela conta que conversar sobre consumo é algo que já faz parte da rotina da família
“Quanto eu tô de férias, a gente sempre faz uma lista daquilo que eu já tenho em casa. Aí, eu marco com umas bolinhas, tipo um ‘certinho’, aquilo que eu tenho. O que eu não tenho, eu não marco, pra saber o que precisa comprar. Mas esse ano foram só umas cinco coisas”, garante a pequena, resumindo de um jeito fácil e didático o que é o tal do consumo consciente.
Por isso, Eduardo, como pai, ressalta a importância de apurar a abordagem das escolas antes de matricular as crianças. “Nós analisamos o projeto político pedagógico de várias escolas da cidade antes de escolher. Essa escola onde as meninas estão, trabalham com o princípio da coletividade e da colaboração”.
“É na escola que as crianças se encontram, e é nesse encontro que a gente se depara com os problemas, como um poder ter e outro não”, afirma Márcia.
“Parar tudo e cancelar todo o consumo não vai dar, então, como conviver de uma forma saudável e tornar as crianças mais pensantes sobre ele?”
Comprar tudo novamente na volta às aulas?
É esse questionamento que norteia o trabalho do Milc, que atua para sensibilizar a sociedade sobre os direitos da criança e o debate sobre a regulamentação da publicidade infantil.
“O contrário do consumismo, que combatemos aqui no Milc, é o consumo responsável, sustentável e consciente. Quando falamos em materiais escolares, que muitas vezes são exigidos pela escola de maneira exagerada, falamos de uma lógica de consumo de produtos industriais de massa, sem alternativa ao que é feito em casa ou produzido localmente”, diz o texto “Precisa comprar tudo novo de novo“, publicado em julho de 2018.
Para Mariana Machado de Sá é publicitária, mestre em políticas públicas e mãe de dois filhos, defende que devemos não só regular a publicidade em casa, mas também disciplinar o mercado em relação aos direitos das crianças. Cofundadora do Milc, ela relembra que equilibrar o discurso e a prática é parte do processo.
“A palavra convence, mas o exemplo arrasta. Convencer a criança que um material escolar sem personagem é mais adequado por ser mais econômico e ter a qualidade igual ou superior fica mais fácil para uma família que tem uma conduta menos consumista em todas as searas da vida”, explica.
“Envolver a criança na decisão sobre as compras do material escolar é fundamental”, diz Mariana.
Iniciativas positivas x De olho no que é abusivo
Desde 2013, é lei no Brasil: as escolas não podem exigir na lista de materiais itens que sejam de uso coletivo da instituição, como materiais de limpeza, objetos de higiene, pincéis de quadro e giz, por exemplo. Práticas como essa são consideradas abusivas.
É proibido também cobrar taxas adicionais por materiais desse tipo, pois a lei considera que todo custo com a infraestrutura necessária para o cotidiano escolar deve já estar calculada na mensalidade combinada com os pais por contrato.
Na prática, nem sempre é assim que acontece. Basta conversar com mães e pais que têm crianças em idade escolar, perguntar quanto custa em média os materiais de volta às aulas e para manter os pequenos participando de todas as atividades escolares, para observar que há muitas práticas que fogem do que é considerado legal no Brasil.
Há questões, porém, que apesar de serem legais, dividem opiniões. Taxas de viagens e saídas que serão propostas ao longo do ano, por exemplo, podem ser cobradas à parte, e muitas vezes são acrescidas (à vista ou a prazo) no valor inicial da lista de materiais solicitada no começo do ano letivo. Alguns pais consideram a prática abusiva, e acusam a escola de utilizar o valor arrecadado como capital de giro da instituição. Nestas e em outras situações, vale a iniciativa que é sempre bem-vinda para manter uma relação saudável escola-família: dialogar, propor e acompanhar.
Quem estiver em dúvida do que é de fato abusivo ou não, a orientação primeira é pedir para verificar no PPP da escola se existe demanda para as solicitações em questão, afinal, no documento devem constar as atividades previstas no ano. Em outros casos, também procurar órgãos competentes, como o Procon (Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor).
Alguns exemplos de itens proibidos de cobrança
- Botões;
- Canetas para lousa;
- Carimbo;
- Algodão;
- Fitas adesivas;
- Isopor;
- Medicamentos;
- Álcool e outros materiais de limpeza;
- Materiais de escritório;
- Guardanapos;
- Talheres, copos e pratos descartáveis;
- Jogos em geral.
(Fonte: Brasil.gov.br)
Clique aqui para ler o texto da lei na íntegra, e conheça seus direitos para poder cobrá-los.
Nesse ponto, vale ponderar como e qual é a relação entre a escola e os pais para compreender o que pode ser considerado abusivo, principalmente no que diz respeito a cobranças extra-mensalidade, no caso das escolas particulares.
Assim, para além de somente observar o que diz a lei, os pais podem acompanhar de perto quais são os combinados feitos entre a coordenação e os professores para estreitar os laços de confiança e cooperação, além de se certificar como os conceitos e ações previstos no plano político pedagógico daquela instituição são colocados em prática.
“Hoje em dia, estudar em uma escola privada já é um investimento, por isso todos os gastos têm que ser considerados, senão tornamos a educação cada vez mais elitizada”
É o que avalia a pedagoga Márcia Murillo, que leciona para o ensino fundamental II na Escola de Educação Básica Educar-se, em Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do Sul. Elaexemplifica também com iniciativas dos próprios pais para trocar livros e uniformes, que se organizam em grupos no Facebook para baratear os custos dos estudos dos filhos.
Algumas instituições também têm a iniciativa de realizar projetos de reaproveitamento coletivo envolvendo toda a comunidade escolar, a fim de dar uma destinação responsável aos objetos utilizados na escola, desde livros didáticos até uniformes. Ideias como essa reduzem o custo da lista de materiais, principalmente no início do ano.
“Trabalhamos com o conceito do uso coletivo dos materiais. Temos alguns que são de cada um, como estojo e caderno, e outras muitas que são compartilhadas entre todas as crianças. Essa é uma prática nossa pensar nisso, apesar de não ser uma regra, porque nem toda escola pensa nisso”, pondera a professora.
“Ontem mesmo eu fiz a compra do material da Luiza, e considerando tudo o que ela vai precisar e que vai conseguir aproveitar do ano anterior, incluindo livros, o custo vai ficar em torno de $150. Fazemos pesquisas, tanto na internet quanto nas papelarias locais. Outra prática que dá certo para diminuir custos é a redução de materiais com personagens. Um caderno com personagem chega a ter o dobro do valor de um outro padrão”, compartilha Valdir, pai de Luiza.
“Ninguém nasce consumista”
Este é o lema do programa Criança e Consumo, do Instituto Alana. “Consumismo é uma ideologia, um hábito mental forjado que se tornou uma das características culturais mais marcantes da sociedade atual. Não importa o gênero, a faixa etária, a nacionalidade, a crença ou o poder aquisitivo. Hoje, todos que são impactados pelas mídias de massa são estimulados a consumir de modo inconsequente”, diz a apresentação do projeto, que trabalha para combater a comunicação mercadológica dirigida às crianças.
Considerando que a escola é inevitavelmente um microcosmos da sociedade, a publicidade também chega aos materiais escolares, inflacionando o valor dos produtos e muitas vezes associando a experiência escolar ao desejo por consumir mais e mais.
Segundo a pesquisa TNS/InterScience 2003, as crianças brasileiras influenciam 80% das decisões de compra de uma família.
Por isso, tentar blindar as crianças contra essas interferências é uma tarefa praticamente impossível. Assim, mais efetivo é conversar sobre consumo com as crianças, principalmente na volta às aulas. Por que compramos o que compramos? Quanto custam as coisas que temos? Perguntas como essas podem ser pontos de partida férteis para um diálogo saudável sobre o assunto.
Apesar de a questão do consumo ser uma responsabilidade compartilhada entre a família, a escola e a sociedade como um todo, os adultos que as crianças tomam mais frequentemente como referência são os pais, pois é neles que ela consegue observar os hábitos e comportamentos mais cotidianos.
“Embora a questão seja tratada quase sempre como algo relacionado à esfera familiar, crianças que aprendem a consumir de forma inconsequente e desenvolvem critérios e valores distorcidos são de fato um problema de ordem ética, econômica e social”, afirma o Criança e Consumo.
“A criança foi descoberta por esse mundo que não existia. Claro que sempre existiu brinquedo, mas não com essa demanda de hoje. É um apelo muito grande, então é claro que elas vão ter vontade de ter as coisas. Eu não consigo enxergar a possibilidade de praticar uma educação hoje que não contemple a preocupação com isso”, explica Márcia.
Como minimizar os gastos?
Eduardo, pai de Giovana, conta que sempre estimula a filha a preservar ao máximo os materiais para que eles durem até o próximo ano. Trocas de materiais, livros e uniformes também são uma possibilidade para quem quer economizar nesse período de volta às aulas.
Porém, vale lembrar: atitudes como essas de reaproveitar um caderno usado pode frustrar a criança se antes não houver um diálogo franco sobre hábitos de consumo. Afinal, ela é parte da sociedade e responde a ela do seu lugar de sujeito em formação, vulnerável aos estímulos da mídia e do seu círculo de convívio. Ou seja, antes de querer convencer sua criança de que é bacana reaproveitar um caderno usado, é preciso que ela esteja bem instruída sobre o que esse gesto representa.
“A questão é equilibrar o desejo das crianças com a criatividade”, sugere Eduardo, contando que a filha, mesmo sendo uma criança consciente sobre consumo, vez ou outra pede para ter algo específico. E não tem nenhum problema nisso, ele defende. A paixão da vez da pequena são os unicórnios e flamingos. “Objetos como esses são legais, porque não remetem diretamente a um personagem, mas ainda assim estão na moda e despertam curiosidade”.
Dicas para evitar excessos na volta às aulas
- A primeira dica é buscar compreender para que cada material vai ser usado. Caso existam itens que não sirvam para estimular a expressão e produção do conhecimento do estudante, é importante questionar sua presença na lista junto à escola;
- Pesquisar os preços na internet e em papelaria grandes e menos tradicionais (ou mesmo pequenos comércios de bairro) pode trazer alguma economia;
- Juntar grupo de mães e pais para fazer compras coletivas pode viabilizar a compra em um atacadista e um desconto maior;
- Tudo pesquisado, para colocar na ponta do lápis a economia e ver se vale à pena o esforço;
- Outra iniciativa que pode gerar muita economia na volta às aulas é fazer feiras e grupos para compra e venda de livros didáticos e paradidáticos;
- É fundamental ensinar à criança e ao adolescente a cuidar dos mesmos para que seja um item valorizado para venda no ano seguinte;
- Uniformes e livros didáticos e paradidáticos são itens da volta às aulas que podem facilmente ser passados de um estudante para outro sem prejuízo. Grupos de troca ou venda por valores com descontos significativos geram economia, são ecologicamente mais sustentáveis e servem de exemplo para os filhos;
- Fazer uma avaliação de estojos, mochilas e material de uso pessoal é também uma maneira de economizar: muitas vezes as canetas, lápis, borrachas, apontadores, marcadores coloridos, etc, estão em perfeitas condições de uso dispensando a compra todos os anos;
- Caixas de lápis de cor, giz de cera e canetas hidrográficas desfalcadas podem ser completadas com caixas de menos cores, dispensando a compra dos lápis que já existem.
Uma série de vídeos com a crafiteira Stefi Machado está disponível no canal do YouTube do Lunetas, ensinando a reaproveitar o material escolar. São dicas utilitárias e divertidas para colocar a mão na massa com as crianças. Dentre elas, estão como fazer um iceberg de giz de cera, e como fazer um carimbo de borracha.
Leia mais
Leia a descrição da lei, disponível no site do Planalto: “Será nula cláusula contratual que obrigue o contratante ao pagamento adicional ou ao fornecimento de qualquer material escolar de uso coletivo dos estudantes ou da instituição, necessário à prestação dos serviços educacionais contratados, devendo os custos correspondentes ser sempre considerados nos cálculos do valor das anuidades ou das semestralidades escolares.”