Vamos imaginar a seguinte cena: uma criança de seis anos recebe um pijama como presente de aniversário. Ela faz uma careta e solta: “Não gostei, eu queria brinquedo!” Os pais se aproximam, dizem que não é assim que se fala e pedem desculpas ao convidado. Mas, naquela manhã, o pai havia dito: “mentir é feio”. A criança, então, aprende que não deve dizer o que sente sobre o pijama ou “educadamente” calar-se, omitindo o que realmente pensa.
“Eu fui criada num mundo em que as crianças eram ensinadas a dizer a verdade, mas não levou muito tempo para nos darmos conta de que os adultos não praticavam o que diziam.” Esse enunciado é de bell hooks* no livro “Tudo sobre o amor: novas perspectivas”. É o velho ditado do faça o que eu digo, não faça o que eu faço. Segundo hooks, crianças “aprendem que mentir é uma maneira de evitar se ferir e ferir os outros”.
É a partir do exercício do faz de conta que a criança acessa o reino da imaginação e desenvolve habilidades, como lidar com sentimentos confusos e aprimorar uma linguagem que organize os afetos. Mas o faz de conta pode se tornar um tipo de “cavalo de Troia”, quando as crianças descobrem uma lógica cruel: se ela fala a verdade, pode ser punida; se dissimula, dizendo o que os adultos querem ouvir, será recompensada. Ora, isso não ocorre somente no ato de ser “educada” ao declarar gostar de um presente que ela detestou. Essas lições são cotidianas na vida das crianças.
O ato de imaginar não deve ser tomado pela mentira e dissimulação: ambas adoecem lentamente.
Pode não parecer, mas tudo isso faz parte de uma sociedade estruturalmente patriarcal.
Tomo emprestado uma cena da trilogia “O Poderoso Chefão”, para ajudar a ilustrar este pensamento. Há um diálogo em que o personagem Vito Corleone diz para seu filho Michael: “Mulheres e crianças podem ser descuidadas; homens não”. Tal afirmação envolve esconder sentimentos, dissimular e fazer de tudo para manter-se no poder.
Eu mesmo aprendi isso quando era criança, então, recorro à uma lembrança da infância: em festas de aniversário, os homens adultos da família (pai, tios, avô) diziam: “Doces são para mulheres e crianças!”. A lição é a mesma dada por Vito Corleone.
Quando a conexão afetiva torna-se ‘empecilho’
O patriarcado ensina às crianças a vencer não importa o que façamos, a mentir a qualquer custo, a não reconhecer e assumir emoções. Um “homem de verdade” sempre paga o preço que for preciso, assume suas responsabilidades, não se distrai comendo doces. Um “homem de verdade” usa a raiva para destruir seus inimigos e também a utiliza para punir quem sai da linha mesmo que seja uma pessoa aliada ou “amada”. Não é à toa que os homens estão mais envolvidos com situações de abuso e violência.
A imagem do adulto poderoso como uma pessoa dissimulada que esconde a raiva e desfere ataques surpresas acaba interferindo nos corações e mentes das crianças. Meninos, meninas, negras, indígenas, brancas, pobres, ricas ou de classe média são influenciadas por esse modelo. Elas começam a acreditar que o rosto do poder é masculino, adulto, cisgênero, heterossexual, agressivo, rico e branco. Se o que eles fazem é mentir e dissimular, todas as pessoas acabam aprendendo que essa é a “regra de ouro” para uma vida de sucesso. Poder e controle tornam-se mais importantes que sentimentos.
A estrutura patriarcal que coloca os homens acima das mulheres molda profundamente a forma como as crianças se relacionam com suas emoções.
Carl Gustav Jung contribui para a ideia de que à medida que o poder é primordial na vida de uma pessoa, o amor se torna ausente. Ensinar as crianças que elas podem dizer o que sentem é uma das tarefas mais importantes de uma sociedade.
É preciso garantir que a criança não seja punida pelos seus sentimentos.
Vale lembrar que a Convenção sobre os Direitos da Criança da Unicef destaca os três “pês”: proteção, provisão e participação. Esses “pês” estão em nítida oposição ao “p” do patriarcado que insiste em ensinar que o poder é mais importante do que tudo.
Quando a infância é pensada como uma categoria política de proteção, provisão e participação, nós podemos mobilizar toda a sociedade em prol de novos rumos.
É urgente que adultos que convivem com crianças em qualquer nível ou instância se responsabilizem por garantir que elas se mantenham conectadas a suas emoções e sentimentos. O que implica diretamente que esses adultos comecem buscando a criança que fomos e escutando a infância que nos foi roubada.
Em uma sociedade que se preocupa mais com o poder do que com a conexão afetiva, uma das principais estratégias está em roubar a infância das crianças.
Nós precisamos continuar resistindo ao sequestro da infância em todas as suas formas. Um caminho possível é incentivar e criar espaços de confiança para que as crianças fiquem confortáveis para expressar e manejar seus afetos.
* Além da obra “Tudo sobre o amor: novas perspectivas”, de bell hooks, destaco as leituras de “A arte de amar”, de Erich Fromm; “Os arquétipos e o inconsciente coletivo”, de Carl Gustav Jung; e “Children of the future: on the prevention of sexual pathology” (“Crianças do futuro: sobre a prevenção da patologia sexual”, em tradução livre), de Wilhem Reich.
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Antes da Lei 13.010 de 2014, popularmente chamada de “lei da palmada”, as crianças aprendiam oficialmente que uma pessoa adulta, exercendo o poder de controle, podia dizer que a amava e torturá-la com tapas ou suplícios de vários tipos. Alguns adultos ainda dizem, saudosos: “Apanhei e não morri, estou aqui”.