“É preciso enxergar além da dor”, afirma a médica de família e comunidade, Marciele Fagundes. Seu dia a dia na Unidade Básica de Saúde (UBS) Érico Veríssimo, do Alto Boqueirão, na região Sul de Curitiba (PR), deixa claro que a qualidade do cuidado em relação à saúde integral da mulher, criança e comunidade, depende de um olhar holístico. “Temos que saber como é sua vida naquele território e como são suas relações familiares”, diz.
A atenção primária é uma espécie de porta de entrada do sistema de saúde. Com acompanhamento do nascimento à idade adulta, ali são identificados os principais problemas que atingem a população e, por isso, o acolhimento e a construção de vínculos são fundamentais. Além disso, é muito comum que sejam equipes de saúde as primeiras a registrarem casos de violência contra mulheres e crianças, e acabem sendo responsáveis por encaminhá-las para outros níveis de assistência, como Conselho Tutelar, Centro de Referência da Assistência Social (CRAS), delegacias ou até mesmo buscar parentes e abrigos públicos, em uma articulação que caracteriza a intersetorialidade.
“Mas essa conversa entre os órgãos precisa estar mais estruturada e os encaminhamentos devem ser mais claros”, aponta a médica, que, muitas vezes, observa uma situação de risco já identificada ser encaminhada de um órgão a outro, sem resolução rápida.
A proposta de atenção integral vem transformando as relações entre as equipes de saúde e a população, apesar de ainda enfrentar outros impasses, como a alta demanda. “Cada equipe de unidade de saúde deveria atender entre duas a três mil pessoas, mas, na prática, se atende de cinco a dez mil”, afirma Marciele. A sobrecarga na unidade faz com que as estratégias de acompanhamento de doenças crônicas e outras investigações sejam deixadas de lado para “apagar incêndio”, como relata.
O princípio da integralidade no Sistema Único de Saúde (SUS) está previsto no artigo 196 da Constituição Federal de 1988, por meio da Lei nº. 8.080/1990. Desde 2004, o SUS é orientado pela Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher, construída em parceria com movimentos de mulheres e diversos setores da sociedade. Em 2017, esse olhar se alinha à revisão das diretrizes para a organização da Política Nacional de Atenção Básica.
Saúde integral da mulher
Ao longo da história, diferentes processos políticos aliados à atualização do conhecimento resultaram na percepção de que cuidar da mulher vai muito além de curar doenças que atingem especificamente o universo feminino, mas está diretamente relacionado à garantia de bem-estar físico, emocional e mental, influenciados por muitos aspectos da vida.
A mulher precisa ser atendida em todas as fases de sua vida, considerando as diferentes necessidades de cada etapa.
A enfermeira do Complexo do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e doutoranda em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Juliana Mittelbach, explica que a integralidade inclui promoção, prevenção, tratamento, reabilitação e educação em saúde. Todas essas ações, segundo ela, devem estar relacionadas à compreensão das desigualdades econômicas, de gênero, raciais, territoriais e de todos os fatores que afetam o acesso à saúde e a direitos básicos, já que eles podem determinar como as mulheres se sentem e se relacionam com suas próprias queixas, patologias e mal-estares.
Na equação da saúde, é preciso considerar ainda os efeitos específicos da pandemia de covid-19 sobre essa população. Apenas em 2021, o anuário divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, apontou 30.861 agressões por violência doméstica, um aumento de 0,6% em relação ao ano anterior. O documento também registra 597.623 ameaças (aumento de 3,3%) e 619.353 chamadas ao 190 (aumento de 4%). Em relação às medidas protetivas de urgência, a porcentagem foi de 13% a mais que em 2020, o que significa um total de 370.209.
Hoje, o atendimento especializado e integral para mulheres vítimas de violência doméstica e sexual no SUS é garantido por lei. A Constituição estabelece, entre outros direitos, acompanhamento psicológico e cirurgias plásticas reparadoras, além da possibilidade de ampliação da rede de cuidados. Mas a intersetorialidade ainda é um dos fatores-chave para evitar a revitimização, uma violência institucional que gera intimidação, sofrimento ou estigmatização, segundo a Lei 14.321 de 31 de março de 2022.
Se alguma vítima recorre ao sistema de saúde para realizar uma denúncia ou buscar acolhimento é preciso garantir sua proteção em diálogo com outros níveis de assistência. Se os profissionais desses órgãos não estiverem capacitados para esse atendimento, meninas e mulheres estarão sujeitas a outros tipos de violências, como acontece repetidamente em casos de negação por equipes de saúde de interrupção da gestação em situações já garantidas por lei, como risco de vida para mãe, anencefalia do feto e estupro.
Humanização no atendimento
A noção de saúde integral também inclui recuperar conhecimentos sobre o próprio corpo, valorizar as experiências pessoais e desafiar um modelo medicalizador e hospitalocêntrico. “Infelizmente, o sistema de saúde também pode ser um lugar que reproduz violências contra a mulher”, atenta Juliana. Isso acontece, por exemplo, em casos de negligência e violência obstétrica, uma terminologia que ainda precisa de reconhecimento para adentrar as políticas públicas.
No caso de Michele Bomfim, as dores eram o início de um aborto espontâneo que encerraria horas depois, na sua própria casa, com a expulsão de um segundo saco gestacional ignorado durante o processo de curetagem. “Foi só então que eu descobri que havia perdido gêmeos”, lamenta. Até hoje, ela não sabe ao certo os motivos da perda, tampouco recebeu um acompanhamento ou aconselhamento posterior para as próximas gestações. “Será que isso pode ser considerado negligência?”, questiona.
Na quinta gestação, Rose Duci nunca ouviu falar em plano de parto. Durante o nascimento de Dulce Maria, sua segunda filha, os médicos não registraram a hemorragia no prontuário. No terceiro parto, do filho Pietro, a entrada do pai no hospital só foi permitida quando metade do corpo da criança já havia chegado ao mundo. Já Roberta da Silva foi maltratada ao chegar ao posto de saúde com dores abdominais durante uma gestação planejada. Segundo relata, a equipe a acusou de ter provocado o aborto dos trigêmeos.
Tais violências se alinham a outro enredo que aproxima as histórias de Michele, Rose e Roberta: elas são mulheres negras, de baixa renda e baixa escolaridade. Uma delas é mãe solo, a outra vive em uma ocupação urbana na periferia de Curitiba e a terceira está desempregada. Todas elas, quando questionadas, relatam outros casos de parentes e amigas que sofreram maus tratos em postos de saúde e hospitais. Todas elas, em silêncio, reconhecem as situações de racismo e concordam que existe uma afronta a seus direitos sexuais e reprodutivos, embora desconheçam o termo. Como, então, pensar em um cuidado integral, sem considerar como esses fatores atingem a qualidade de uma gestação?
Humanizar o atendimento às gestantes e parturientes envolve fortalecer ambos os lados, equipes de saúde e usuárias do sistema. Quanto mais informadas estiverem, maior será a participação ativa das mulheres nas decisões que envolvem seu corpo. Quanto mais capacitadas estiverem, maior será o respeito das equipes de saúde em relação à decisão da mulher. “A mulher deve ter a autonomia de viver sua vida sexual e reprodutiva fora do contexto familiar conservador. Somos protagonistas da nossa própria história e não um objeto de intervenção e proteção”, atenta Juliana.
Mas esse debate ainda esbarra em decisões governamentais, como pelo desmonte, em abril de 2022, do programa Rede Cegonha, criado em 2011, e que garantia atenção primária especializada no pré-natal, parto e pós-parto. A iniciativa foi substituída pela Rede Materno e Infantil (RAMI), criticada por entidades e especialistas por dar ênfase à atuação do médico obstetra, excluindo a figura do enfermeiro obstetra, dedicados à promoção e humanização da saúde materna e infantil, com atuação reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Para Juliana, a decisão aconteceu de forma arbitrária, sem debate com a sociedade, e representa um risco à saúde reprodutiva.
Gravidez na adolescência
Indicadores no Brasil vêm mostrando que a incidência de gravidez na adolescência é maior quanto mais difíceis são as condições educacionais e socioeconômicas de um território. Segundo dados da Fundação Abrinq, a região Norte é a que apresenta o maior índice de nascidos vivos de mãe adolescente (principalmente entre 15 e 19 anos), de 21,3%. Em Altamira, município do oeste do Pará, com histórico de empobrecimento e aumento de violência urbana na última década, a gravidez na adolescência e na infância ainda é um dos problemas centrais para profissionais de saúde.
“O que mais nos incomoda é atender meninas de dez anos que estão fazendo cesáreas”, denuncia a psicóloga Jackelinny Cruz, que atua na assistência de populações ribeirinhas. Ela conta que as condições são piores no interior, em territórios de difícil acesso e acompanhamento de casos que deveriam ser encaminhados para Conselhos Tutelares, como o de casamentos infantis. “A gente escuta mães dizendo que não têm condições de sustentar as filhas. Pelo menos assim elas têm o que comer”, relata a psicóloga.
Prejuízos da gravidez na adolescência
Desde 2019, o número de mães entre dez e 19 anos diminuiu, em média, 18%, de acordo com o levantamento do Sistema de Informações de Nascidos Vivos, do Governo Federal. Apesar disso, hoje ainda são registrados 17.526 nascidos vivos de mães entre dez e 14 anos, e 363,252 mil de mães entre 15 e 19 anos, o que acaba prejudicando a vida de crianças e adolescentes.
Estatísticas nacionais e internacionais mostram que a gestação nessa fase da vida eleva as chances de complicações para mães, fetos e recém-nascidos. Os riscos para a saúde são a mortalidade materna, prematuridade do recém-nascido, abortamento, transmissão de Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) e violência obstétrica. Além disso, a gravidez na adolescência pode agravar as desigualdades sociais ao comprometer projetos de vida, gerar abandono escolar e dificuldade de inserção no mercado de trabalho.
Embora um dos principais fatores de prevenção da gravidez na adolescência seja a educação, alcançar meninos e meninas nesse tema é um desafio em todo o Brasil. Isso porque, segundo Marciele, a procura por informação nos serviços de saúde não costuma ser espontânea. “É muito comum que o primeiro contato seja quando as adolescentes vêm buscar pílulas do dia seguinte, ou seja, já aconteceu”, diz. Por isso, atividades preventivas costumam ser pensadas em parcerias com as escolas ou espaços de cultura, de lazer, e até mesmo as igrejas, que atingem essa faixa etária.
E se engana quem imagina um trabalho mediado por cartilhas e “pregações”. Na verdade, grande parte desse cuidado vem de “rodas de conversa sobre a vida”, como descreve a médica. Isso exige que um profissional ultrapasse o saber técnico e desenvolva habilidades para tratar de educação sexual com os jovens, a partir de um olhar integrado e compreensivo, ressaltando a importância de um comportamento sexual responsável, respeitoso, com igualdade, prevenção de ISTs, proteção de gravidez inoportuna, de violências sexuais e outros abusos.
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De acordo com uma coleta de dados públicos, realizada pela Fundação Abrinq, um dos maiores desafios do Brasil para o cumprimento das metas coletivas internacionais da Agenda 2030 das Nações Unidas é a proteção de meninas, adolescentes e mulheres, enfrentando todos os tipos de violência de gênero em seus espaços de convivência, especialmente após a pandemia de covid-19. Uma das metas, segundo a Fundação, é reduzir a mortalidade materna para, no máximo, 30 mortes a cada 100 mil nascidos vivos, o que significa uma queda para mais da metade do número atual de 67,9 em relação à mesma população.
Os dados divulgados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública revelam 66.020 estupros no país em 2021, sinalizando um aumento de 4,2% dos casos, sendo que 75,5% das vítimas eram vulneráveis, incapazes de consentir com o ato sexual. Além disso, 61,3% das vítimas tinham até 13 anos e em 79,6% dos casos o autor era conhecido.
Em 2020, 86,6% das 29.861 vítimas de violência e exploração sexual eram mulheres e tinham até 19 anos. Destas, mais da metade eram negras (57,7%), o que indica uma sobreposição de vulnerabilidades. Não à toa, populações indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais, como as de terreiro, são foco de programas específicos no âmbito da saúde, mais capazes de lidar com as demandas próprias de cada território. “Mas ainda é muito difícil garantir o atendimento integral a populações vulnerabilizadas”, diz Juliana.