Criança e fogo não rima, não dá jogo? Será que criança não pode mesmo brincar com fogo? Em um espaço no quintal da minha casa recebi, há tempos atrás, um menino de nove anos, classe média, zona oeste de São Paulo, que ficou espantado quando acendemos uma fogueira.
Seu corpo endureceu, veio todo tenso se aproximando e me confessou: “Eu nunca vi o fogo”. O fogo era para ele sinônimo de destruição, caos, morte e nada mais. Acender uma fogueira significava que tudo se queimaria em instantes, e o menino estava, claramente, tomado por um pavor.
O fogo é esse elemento vilão, que por regra é preciso se afastar, ter medo e não interagir sob qualquer circunstância quando se é criança. “O que se conhece primeiro do fogo é que não se deve tocá-lo. A interdição social é nosso primeiro conhecimento geral sobre o fogo”, nos conta Gaston Bachelard. Esse filósofo dos elementos segue nos alertando que os adultos, por proteção, primeiro dão um tapa na mão de uma criança que se aproxima do fogo. Depois, o tapa se transforma em uma voz colérica, para a mesma repreensão. E, em seguida, vêm os relatos sobre os perigos de incêndio. “Assim, o fenômeno natural é rapidamente associado a conhecimentos sociais, complexos e confusos, que não dão muita oportunidade ao conhecimento ingênuo”, diz o filósofo.
Em grandes centros urbanos, essas proibições se somam à dificuldade em encontrar um espaço apropriado para fazer fogo. Com isso, fica estabelecido e naturalizado o distanciamento com esse que nos convida ao mais profundo estado de devaneio, transformação, criatividade e relação social. O elemento que nos provoca surgimentos e insights.
Negligenciamos processos essenciais em respeito à segurança, e damos as mãos ao medo e o assumimos como protagonista.
Os cuidados são sempre necessários e fundamentais, e proteger as crianças de qualquer perigo é obrigação básica de todos nós, um verdadeiro instinto da continuidade da vida. Mas, antes de discutir limites e regras, o convite é compreender o que mobiliza uma criança em direção ao fogo, até chegar ao ponto de brincar com ele. E brincar com espontaneidade, ou seja, quando o corpo vai seguindo seus próprios impulsos, com intimidade e respeito ao mesmo tempo.
Um impulso essencial na infância é o da autonomia, o erguer-se sobre si mesmo. Só por aí já é possível imaginar a importância para meninos e meninas conquistarem o espaço de fazer um balão galinha subir, girar uma palha de aço acesa ou fazer pipoca em fogãozinho de quintal.
Ser capaz de domar o fogo, respeitando as suas condições de perigo, amplia horizontes às crianças.
Essa conquista é quase um ritual de passagem, que pode levar anos, desde os primeiros contatos com os mais velhos brincando com essas coisas, até receber a permissão do fósforo! Um marco significativo que cria memória.
Os devaneios junto ao fogo são outro caminho do conhecer que aqui tem aspecto filosófico. Conheço dois meninos de sete anos, que têm a permissão de brincar com fogo, e enquanto cozinham suas poções mágicas de terra, sementes e galhos para “envenenar” o inimigo, filosofam ao pé do fogãozinho de ferro. “Não é incrível o fogo? Ele é totalmente uma vida. Ele respira, se mexe, a gente tem que alimentar ele, senão apaga. Igual a gente”. “É, e, além disso, ele é destruição, mas, se é controlado, você consegue fazer coisas com ele.” Quanta profundidade alcançam as crianças em seu estado de liberdade.
Fogueiras nos levam ao tempo das transformações rápidas, sugere o desejo de mudar, de apressar o tempo. Um tempo rápido, não acelerado. Um tempo ávido por se renovar, destravar processos estagnados, transformar uma coisa em outra, possibilitando, assim, criatividade. Crianças criativas e insaciáveis por mudanças têm no fogo nutrição calórica genial. Criam cumplicidade com esse elemento da transformação.
Difícil imaginar como o fogo pode ser também um aspecto de proteção. Para o povo Yudjá, no Xingu, histórias e conversas ao redor do fogo sob uma lua cheia é resposta aos espíritos do quanto há por celebrar. Lua cheia é preenchida de luz, é tempo de festejar e afastar problemas, vibrar positivamente em medida de proteção. Unir luz da lua com fogueira acorda o espírito que nos ampara, nos defende. Um campo de espiritualidade unindo lua e fogo, regendo sentimentos de acolhimento e proteção.
Não nos faltam motivos para nos sentirmos atraídos pelo fogo.
Porém, é preciso falar, sim, de segurança e respeito das crianças a este elemento. E segurança começa pelo domínio que se cria com o risco, não pelo seu afastamento.
O excesso de restrições e supervisão adulta enfraquece aptidões, cria uma flacidez de infância, um corpo abatido e desprovido de tônus. Cria uma mensagem subliminar de que a criança é incapaz de dar conta de si, portanto, precisa ser constantemente protegida. Taí um grande inimigo a qualquer criança e um perigo eminente, não só físico, mas, principalmente, emocional.
As crianças não têm vocação ou desejo de se machucar. Há um despreparo e uma grande fragilidade pelo desuso de habilidades e competências.
O maior cuidado que um adulto pode oferecer à uma criança não é a restrição, ou a supervisão excessiva, e sim o fazer junto. É apresentar com naturalidade e confiança o gesto de manusear corretamente o fogo, ou do que quer que seja. A confiança das mãos, o cuidado no acender, o respeito pelas chamas, o assoprar mágico que alimenta as labaredas, o zelo com o espaço, tudo isso não se explica, se vive junto. Quem faz cria hábito pelo conhecimento do corpo, daí sim é ativo, penetra e permanece. As informações e dicas de segurança acompanham e iluminam o processo, mas o gesto é o sabedor, a fonte primeira da autonomia.
O que querem as crianças é estar perto de adultos carregados de experiências das mais diversas competências para se nutrirem dessas sabedorias, essencialmente corporais. A cumplicidade de adultos que confiam e acreditam nas aptidões infantis, sem subestimá-las, é desejo de qualquer criança.
Sem a permissão dos adultos, que estão desacordados para esse hábito de fazer fogo, resta às crianças mais ousadas, seguir senão outro, mas no sentido da “desobediência engenhosa”. A criança se arrisca, quer fazer, mas escondida dos adultos, e “qual um pequeno Prometeu, rouba fósforos. Segue o impulso da coragem, se aventura, testa até onde consegue avançar e, aí sim, o risco aumenta.
Sim, podemos assumir que o fogo destrói rapidamente o que estiver ao seu alcance, mas podemos entender que essa é a condição da renovação. Que o controle desse elemento favoreça às crianças e a todos nós as mais intensas e deliciosas transformações e conquistas.
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Em andanças pelo Brasil, muitos foram os brinquedos e as situações que presenciei em que o fogo estava presente. Brincar com pólvora em explosões feitas com o raio da roda de bicicleta e ponta de prego, ou a lata que voa longe detonada pelo acúmulo de fósforo raspado, é coisa de criança que investiga ao máximo essa força da combustão. Vi menino derretendo chumbo e dando forma de quilha, em buraco na terra, em um dos processos mais alquímicos que presenciei com crianças. Bombinhas de festa de São João sendo lançadas por espingardinhas de bambu, e estouros de estalinhos em incríveis desafios de coragem e exemplos de superação. Passei por povoados em que as fogueiras são acendidas diariamente em frente das casas em tempos de festas juninas, onde são contados causos de medo e assombração. O elemento fogo em estado de presença e, como tanto me disse o pesquisador Gandhy Piorski, em lições de Prometeu, que representa a vontade humana pelo conhecimento.