As paredes são cor de rosa, veem-se bonecas, brinquedos e bichos de pelúcia, na porta, uma placa: aqui dorme uma princesa. É um quarto de menina, como muitos pelo Brasil. Mas, há algo diferente ali. Uma poça de sangue tinge o chão de vermelho. Há uma semana, a favela do Jacarezinho foi tomada pela polícia do Estado do Rio de Janeiro, em uma operação que matou 28 pessoas e teve como justificativa, anunciada em comunicado, o aliciamento de crianças e adolescentes para o tráfico de drogas. Contudo, o que assistimos foi a desproteção completa de crianças e suas famílias. Assim, a cada dia, há a necessidade de se afirmar que é falsa a dicotomia segurança pública versus direitos humanos.
É como aquela velha máxima: o que vem primeiro, o ovo ou a galinha? A segurança pública ou a proteção integral dos direitos de crianças e adolescentes? Não há proteção integral sem segurança pública. Isto porque proteção integral significa a união de todas as políticas e serviços para a garantia dos direitos de crianças e adolescentes, a saber, saúde, educação, segurança, cultura e lazer.
Quando a segurança age de maneira isolada das outras políticas, acaba indo para o oposto, gerando insegurança e desproteção, exatamente como aconteceu na favela do Jacarezinho.
As crianças e adolescentes no Brasil em muito sofrem as consequências da desarticulação de políticas públicas, do descumprimento da prioridade absoluta de seus direitos, como determina o artigo 227 da Constituição Federal e, por conseguinte, de muitas injustiças – social, racial, política e econômica.
Pelo menos, trinta e dois milhões de crianças e adolescentes são afetados de alguma forma pela pobreza, como aponta um levantamento do Unicef, com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2015. Essa pesquisa levou em conta tanto os efeitos monetários, quanto a privação de direitos como à educação, informação, moradia, saneamento, acesso à água e trabalho infantil. Entre crianças negras, a taxa de privação é de 58,3%, enquanto entre as brancas é de 38% – relação esta que se mantém nos casos de privação extrema: 23,6% contra 12,8%. Isso, em 2015.
Em um cenário como o que enfrentamos agora, em 2021, essas desigualdades só se aprofundaram. Já são 19 milhões de brasileiros passando fome, por exemplo. E por que falamos disso aqui? Porque há que se refletir sobre qual o Estado que chega até as crianças e adolescentes do Jacarezinho. É aquele garantidor de direitos, que tem a prioridade absoluta como diretriz?
Ou o único Estado que estas crianças conhecem é aquele que invade casas e deixa como saldo poças de sangue, marcas de munição nas paredes, luto e medo?
Além de vítimas diretas – entre 2016 e 2021, foram 100 crianças baleadas na Região Metropolitana do Rio de Janeiro -, crianças e adolescentes também sofrem as consequências indiretas do conflito, como os altos níveis de estresse tóxico e impactos ao longo da vida em suas saúde mental e desenvolvimento, e têm prejudicados o acesso à escola e à convivência familiar e comunitária.
Não à toa, o Supremo Tribunal Federal determinou que fossem suspensas as operações policiais no Rio de Janeiro durante o período da pandemia e ouviu especialistas, famílias, forças policiais, juristas e sociedade civil em audiência pública sobre a letalidade policial no estado. Ao fim dos dois dias do encontro, o Ministro Edson Fachin, relator da ação, afirmou a gravidade do problema, ressaltando o impactos nas crianças, o número inaceitável de mortes como resultado de confrontos com policiais, e a necessidade de a segurança pública ser feita “de forma mais harmoniosa com a Constituição”.
E uma segurança pública em harmonia com a Constituição é aquela que é feita com a prioridade absoluta das crianças e adolescentes como diretriz principal. Que entende que proteger e servir a população é o caminho ideal, o único possível. Há quase cem anos, Eglantyne Jebb, ativista que redigiu a Declaração dos Direitos da Criança, disse que “todas as guerras, sejam justas ou injustas, desastrosas ou vitoriosas, são travadas contra a criança”. Nada mais atual para o Brasil de 2021.
O pai da criança que teve seu quarto invadido e usado como local de execução, em uma entrevista, com a voz embargada, desabafou: “ela não vai mais dormir no quarto dela nunca … como uma criança de nove anos vai crescer com isso?”.
Que país estamos construindo quando negligenciamos, brutalizamos e matamos o nosso futuro todos os dias?
Mayara Silva de Souza é advogada, especialista em gestão pública e responsável pelo projeto Justiça Juvenil do Instituto Alana.
Renata Assumpção é jornalista, especialista em relações internacionais e políticas públicas e pesquisadora responsável pelo Núcleo de Estudos em Desigualdades e Infâncias do Instituto Alana.
*Este texto é de exclusiva responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Lunetas.