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Homens, se levantem do trono do privilégio

Um homem está sentado no sofá olhando para o celular enquanto uma mulher aspira o chão com um bebê no colo. A foto está em preto e branco e o homem é o único elemento em cores.

Escrevo ao som de “O portão”, de Roberto Carlos, para falar com você, que é também um homem que constitui algum tipo de família com filhos. Podemos ser muito, muito diferentes em várias dimensões: raça (o maior dos abismos sociais e identitários deste país), classe, religiosidade, posicionamento político, orientação sexual, ter ou não uma deficiência. Cada variável dessas complexifica a análise de nossas identidades, sobre como nos vemos e como somos vistos no grande espelho social. Mas somos, sobretudo, homens cisgênero. 

Pode parecer uma repetição daquilo que mulheres e seus amigos desconstruídos têm falado. Mas a reiteração é um mecanismo importante na mudança de comportamento, porque somos seres sociais que não se convencem a fazer diferente já na primeira frase oposta ao hábito arraigado. Mudar significa despedir-se de algo que nos é útil, fundante, que responde talvez a lealdades que nem sequer percebemos. As ideias mais reprisadas sobre as novas relações entre gêneros ainda são um pedaço minúsculo de um tecido social que precisa, com urgência contumaz, ganhar asas mais equânimes ao sair do casulo das indecências indignas.

Reconheçamos, juntos, numa conversa íntima: não fomos até aqui obrigados a fazer quase nada do que a sociedade patriarcal “diz” ser função feminina. As mulheres entenderam isso e começaram a pedir de nós uma outra postura. E não o fizeram de forma delicada, muitas vezes, o que nos confundiu. Afinal, não estávamos preparados para a ira feminina, porque a imaginação sempre foi a de salvá-las de sua fragilidade e suplementar sua pequenez operacional. Assim opera o machismo estrutural, esta força cultural que é uma espécie de marionete que controla a forma como somos ensinados a ser homens. Podemos sim ter diferenças individuais, mas não há como fugir do estado inevitável de filho dessa cultura. Topamos escutar mulheres, desde que elas nos digam o que querem de nós num tom subserviente. Topamos dividir a carga mental, desde que elas nos digam qual é a nossa metade a ser feita.

O trono do nosso privilégio é essa força operante e imperceptível, porque já é rotina secular nas identidades masculinas.

Não precisamos pensar em nada do que é considerado doméstico, porque somos direcionados “para o que realmente importa”, que é produzir para o sistema capitalista, e assim cumprir nosso destino de acumular patrimônio, títulos, lugares de poder e de reconhecimento. Tudo o que é doméstico, em uma cultura patriarcal, vale menos, e é depreciado em todas as suas dimensões: o trabalho que elas fazem, o que elas dizem, como elas são, o que elas sentem. Se elas são a metonímia do lugar social que ocupam, podemos desqualificá-las como parte do jogo. 

Mesmo os que estamos tentando ir em direção contrária e apoiar a construção de mundos menos machistas, não sabemos deste sofrimento, não temos condição de compreender o que elas sentem. Por isso mesmo, precisamos escutá-las, uma e outra e outra e outra vez. Enquanto escutamos, prestemos atenção às nossas resistências, à forma com que queremos negar ou fugir, colocando nelas os adjetivos mais nefastos: “tristes, loucas ou más”. Elas são treinadas por esta cultura que nos protege para se verem imperfeitas, inacabadas a ponto de não poderem se expor como desejam, pensam e sentem. Enquanto elas são criadas para o famigerado “bela, recatada e do lar”, somos instados à ousadia. Agora elas viraram esse jogo, e cabe a nós entender o nosso lugar nessa mesa de debate, vida real e mundo novo. Passemos a repetir estes questionamentos, debatendo as dificuldades que sentimos para operar nestes novos registros.

As mulheres saíram (há muito tempo) do lugar de quem lustra o trono do nosso privilégio.

É hora de não irmos para nenhum lugar passar três meses, com o conforto de pensar que haverá mulheres (no plural) bem organizadas para substituir nossas ausências com a gestão da casa e do desgastante cotidiano de cuidado dos filhos e, ao retornar, sermos recebidos como os guerreiros que foram para o mundo vencer na vida. Não é para esse lugar que precisamos voltar. 

Roberto, você estava errado. As coisas que você deixou pra trás deixaram lacunas que tiveram que ser preenchidas pelo trabalho invisível e exaustivo de pelo menos uma mulher. O portão, cada vez mais, estará fechado para este retorno de qualquer de nós que se sente rei. E o trono, quiçá, estará do lado de fora da calçada, em destroços simbólicos que são, na verdade, escombros de nós.

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