Feche os olhos e tente lembrar: quantas vezes você, quando criança ou mesmo como professor, ouviu e usou a expressão “lápis cor de pele”? Afinal, se existem os amarelos, os azuis e os vermelhos, há de existir também o cor de pele. Até aí, nenhum problema. Porém, a qual pele nos referimos? Estamos falando da cor de quem?
Essa é a pergunta que vem dentro do novo livro do ilustrador e escritor paulistano Alexandre Rampazo, “A cor da Coraline” (editora Rocco). Narrado em primeira pessoa pela personagem Coraline, o livro acompanha um dia aparentemente comum, até que seu amigo Pedrinho pede emprestado um lápis “cor de pele”, e uma série de questionamentos, dúvidas e inquietações tomam conta da menina.
“A cor da pele é só uma?”, reflete a pequena. Para saber de que pele Pedrinho estava falando, era preciso saber de quem ele estava falando. Ela olha para ele, olha para si mesma e para a sua caixa de lápis, certamente um só não poderia pintar todo mundo. E logo começa a imaginar mundos de possibilidades, como um país onde todos fossem vermelhos de vergonha.
Ao colocar uma criança negra para questionar qual lápis é de fato “cor de pele”, o autor propõe uma reflexão sobre identidade, representatividade, empatia e consciência sobre a pluralidade.
“A ideia central de “A cor de Coraline” veio de um papo com minha filha mais velha, a Gabriela, por conta de uma atividade sobre identidade que ela fazia num abrigo para crianças não assistidas. Nesta atividade, um menino perguntou para ela se havia o lápis cor de pele, para que ele pintasse seu desenho. O curioso é que o garoto era um menino negro, procurando por um lápis cor-de-rosa. Essa criança simplesmente não se identificava como uma pessoa negra. E qual o motivo disso? Por que não se enxergar, ou não se representar pintando com o lápis marrom?”, conta Alexandre.
“De cor em cor, ela percebeu que não importa o tom de pele, todos são iguais. E então também soube que linda é a cor de sua pele”
Assim, Alexandre Rampazo mostrou a diversidade e a unidade deste mundo. As cores não servem para diferenciar, mas para tornar tudo mais belo. Imagine a monotonia de um mundo cheio de uma cor só? A beleza é a multiplicidade”, diz o escritor Ignácio de Loyola Brandão, que assina o texto da contracapa do livro.
Autor de “Este é o lobo” e de mais de 50 títulos infantojuvenis, o autor conversou com o Lunetas sobre os diversos temas que sua história suscita – multiculturalismo, preconceito, alteridade, entre tantos outros.
- Lunetas – “A cor de Coraline” fala, de certa forma, de como o preconceito e o racismo são socialmente construídos, e, portanto, apreendidos a partir da atitude dos adultos. Pode falar um pouco sobre isso?
Alexandre Rampazo – Estabelecer conceitos sempre foi algo poderoso. A imagem que me vem à cabeça é uma massa moldável, daquelas que você pode mover, torcer e repuxar e dar a forma que você quiser a ela. Funciona mais ou menos assim: se eu disser que amarelo é azul, e disser de novo, e de novo e outra vez, e se você tiver um pouquinho de dúvida se amarelo é realmente azul, provavelmente você irá se voltar para uma terceira pessoa e dirá: “Você sabia que amarelo é azul?”. Existe a possibilidade de quando esse conceito chegar, digamos, na décima pessoa, o amarelo será sim azul. Ao não questionar, tudo que era amarelo se tornará azul um dia.
Se um conceito pré-estabelecido chega até nós, repetidamente no nosso dia a dia pelos meios de comunicação, na escola, em nosso convívio diário, nos estimulando a acreditar que esteticamente somente uma etnia, uma cultura ou um perfil de pessoa socialmente mais valorizado, todos de uma certa forma, passam a olhar conjuntamente em uma só direção. O referencial de sucesso, cultural, estético, passa a ser praticamente um só.
É necessário um pensar mais amplo para esta questão e com certeza é o tipo de discussão que deve passar por quem colabora significativamente para a construção do olhar das crianças para o mundo: os pais; a família; a escola; a comunidade.
“Toda a sociedade deve ter um olhar mais atento e plural sobre o que é uma visão multicultural e voltado para etnias”
- Como teve essa ideia de abordar o assunto? Você viveu alguma experiência pessoal nesse sentido? E por que resolveu falar sobre?
Alexandre Rampazo – O canal da criatividade, aquela chama inicial da criação, penso que deva ser um canal sempre aberto para quem produz narrativas. Uma ideia pode surgir de um papo entre amigos; com o um sobrinho; num trecho de uma canção; numa cena de um filme; num papo com sua filha.
A a ideia central de “A cor de Coraline” veio desta forma, de um papo com minha filha mais velha, a Gabriela, por conta de uma atividade sobre identidade que ela fazia num abrigo para crianças não assistidas. Nesta atividade, um menino perguntou para ela se havia o lápis cor de pele, para que ele pintasse seu desenho. O curioso é que o garoto era um menino negro, procurando por um lápis cor-de-rosa. Essa criança simplesmente não se identificava como uma pessoa negra. E qual o motivo disso? Por que não se enxergar, ou não se representar pintando com o lápis marrom?
A minha filha então perguntou de qual lápis cor de pele ele estava falando? Era um questionamento que ele mesmo nunca tinha feito para si. Para mim essa era a história para ser contada.
“A cor de Coraline” não é sobre a subjetividade no questionamento do Pedrinho e sim sobre a construção de identidade da pequena Coraline
Assista ao booktrailer do livro:
- O livro desperta também a questão da empatia, afinal, os personagens se sensibilizam com questões que necessariamente vivenciam na pele. Ao seu ver, a infância é esse tempo em que o outro é realmente uma extensão de nós? Quando isso muda?
Alexandre Rampazo – Bem, não sou pesquisador e nem tenho dados para falar com autoridade sobre infâncias, então vou fazer um exercício de “achismo” e da percepção que tenho do mundo. Obviamente, crianças passam por muitos ciclos naturais de crescimento e entendimento do mundo que as envolve. Quando a atitude da criança passa por: “Isso é meu!”; “Eu quero!”; “Não quero mais!”; tudo isso faz parte desse processo de autoconhecimento e entendimento de tudo que a rodeia.
Mas quando o movimento da criança é de: “Quer um pedaço?”; “Tá doendo?” ou “Vamos brincar?”, isso também faz parte dessa construção sobre entender o que o outro é.
“Quando a criança faz esse exercício simples de entender ou se sensibilizar pela dor ou pelo que o outro é, ela se vê espelhada”
Deixar isso se perder, mesmo nessa primeira infância quando ele diz, por exemplo “Eu tenho e você não tem”, esse pequeno sinal de individualismo negativo, ao meu ver, é quando deve existir uma intervenção positiva do adulto.
É evidente que não é tão simples esse processo. Exige uma série de fatores, situações particulares, mas, grosso modo, a condução do racional da criança para entender que o outro sente, quer e precisa da mesma forma que ele, é um exercício para que esse entendimento de empatia seja um exercício para toda a vida. Sinceramente, não sei em que momento isso muda, diminui ou se perde, mas penso que definitivamente é um traço do ser humano que certamente deveria manter numa curva ascendente conforme evoluímos e entendemos a necessidade de cuidarmos uns dos outros.
- Os adultos vivem perpetuando o preconceito mesmo sem perceber. Como cuidar de nossas falas para que sejam livres de qualquer discriminação?
Alexandre Rampazo – Os vícios nos discursos passam principalmente pela automaticidade das relações e pela falta de empatia, de se colocar no lugar do outro, de enxergar o outro como igual. Não é uma questão só de fala, uma questão somente discursiva, é uma questão de ação e de atitude.
Por que aquela senhora que limpa a sua casa toda semana não pode almoçar na mesma mesa e no mesmo horário que você? Por que fulano tem “o pé na cozinha”? Por que o porteiro do prédio não pode receber um “Bom, dia. Tudo bem com você?”? Por que “hoje é dia de branco”?
Se em todas essas ações/discursos você não estiver segurando a mão do seu filho e ele atento ao seu lado, te observando com essas atitudes questionáveis, qual é o referencial que ele criará? Qual repertório ele vai acumular?
Muito, mas muito provavelmente, a criança terá uma ação espelhada na atitude dos pais
Estar mais atento ao que você diz e entender que isso não é vitimismo, como muitos dizem, é parte fundamental para criar uma atitude construtiva, positiva e empática na cabeça dos pequenos.
“Atitudes mínimas, porém, cheias de significado, certamente tornam-se engrenagens positivas para um convívio baseado em afeto”
- Lunetas: Como trata essa questão com seus filhos?
Alexandre Rampazo – Tenho duas filhas: a Gabriela (26) e a Giulia (21). Olha, hoje elas são mulheres, superbem resolvidas e orgulham a mim e a minha esposa por suas atitudes, clareza, generosidade e integridade. Hoje estou na fase em que elas ensinam muito mais a mim do que eu a elas. Penso que eu e minha esposa fornecemos as bases para que elas sejam o que são hoje como pessoas. Sempre conviveram com pessoas de diferentes etnias, religiões, sexualidade, ou poder aquisitivo da melhor maneira possível. Sempre observaram essas pessoas não por qualquer tipo de classificação ou rótulos, mas simplesmente como pessoas, como iguais.