Água, barco, casa, peixe, rio, trabalho: o dicionário pantaneiro que descreve a realidade de famílias ribeirinhas do centro oeste do país, diz muito sobre as dificuldades de acesso a direitos básicos em regiões alagadas. Para muitas pessoas que vivem às margens do Rio Paraguai, no Mato Grosso do Sul, a palavra “escola” ou não pertence ao léxico ou é novidade recente. Afinal, um trajeto diário até a sala de aula pode significar uma viagem de muitas horas, sem contar com imprevistos e adversidades climáticas.
“As casas ali são isoladas e esparsas. Não havendo estradas, o deslocamento é feito por barcos, que é considerado um meio de luxo, assim como ter combustível”, descreve Sylvia Helena Bourroul, diretora da Escola Jatobazinho, construída há dez anos para atender a demanda educacional dessa região. Ela está localizada em uma fazenda no meio do Pantanal, a cerca de 100km da cidade de Corumbá (MS) e mantém 54 alunos de famílias ribeirinhas, que cursam do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental.
Diante do contexto de vida dos moradores da região e da necessidade de deslocamento extenso, a Escola Jatobazinho funciona como um internato para crianças e adolescentes, que intercalam dois meses na escola com um intervalo de 15 dias em casa. A proposta de revezamento, de acordo com a diretora, é importante para a manutenção dos vínculos familiares, considerados prioridade no ambiente escolar. O regime de frequência, no entanto, não é apenas um cronograma que garante a possibilidade de estudar, mas uma prática de aproximadamente 80 anos chamada Pedagogia da Alternância.
Teoria e prática
A pedagogia da alternância possui inúmeras faces e possibilidades de aplicação. Ela foi criada por volta de 1935, por camponeses da França, com o objetivo de garantir educação aos jovens do campo, sem precisar perder o vínculo com a roça. Nesse contexto, a alternância, incorporada no projeto das Escolas Família Agrícola (EFA), foi uma saída encontrada para intercalar momentos de atividade escolar com períodos de prática no campo, processo em que jovens viviam um intercâmbio de experiências em ambientes distintos, um teórico e outro prático.
Da França, a proposta, inicialmente ligada à Igreja Católica, se espalhou pelo mundo e foi implementada no Brasil pela primeira vez no Espírito Santo, em 1969, local onde surgiram as primeiras três EFA do país. É o que explica Fernanda Ferreira dos Santos, pesquisadora e coordenadora da Escola Família Agrícola (EFA) Nova Esperança, no município de Taiobeiras, norte de Minas Gerais.
“É uma experiência pedagógica direcionada aos jovens da área rural, buscando a profissionalização, a partir de uma educação voltada para práticas agrícolas e por meio de uma gestão local comunitária, pensada pelos próprios agricultores ”, afirma. O objetivo do formato, segundo a coordenadora, é trabalhar a educação conforme a realidade local dos alunos, superando os desafios das áreas onde estão inseridos.
“Isso que é tão fantástico na pedagogia da alternância: formar escolas que estão à serviço dos territórios. Elas têm liberdade de se organizar da melhor forma para atender a realidade social dos estudantes”
Valorizar saberes
A experiência da Escola Nova Esperança, que fica na região do semiárido mineiro, mostra na prática como o currículo escolar é pensado com foco na realidade social dos alunos. Com oferta para estudantes do Ensino Médio, a unidade utiliza o “plano de formação” como instrumento para organizar o modelo de alternância. Ele garante a abordagem de temas como a história e o diagnóstico da comunidade, agroindústria, sistemas agroalimentares, pecuária, cooperativismo, valor econômico do semiárido, comercialização, tecnologias de utilização da água, entre outros relacionados ao desenvolvimento local sustentável, com foco atual na agroecologia.
Com modelos de educação centrados na vida urbana, o desenvolvimento do ensino formal no país cresceu estimulando o deslocamento de filhos de agricultores para as cidades. As Escolas Família Agrícola surgem então como alternativa para a formação de lideranças locais, prevenção do êxodo rural, instrumento de desenvolvimento agrícola e também como um projeto político de valorização do morador do campo.
Com tantas pretensões, Fernanda Ferreira aponta vários desafios das EFA, entre eles a garantia de uma gestão comunitária com financiamento público. Em Minas Gerais, as escolas que aderem ao modelo da alternância são financiadas pelo estado, com recursos captados também via governo federal. Mas ainda há escassez de políticas públicas que atendam este setor. Além disso, a formação dos próprios estudantes, dos profissionais das escolas e dos parceiros também precisa avançar, visto que “as escolas não se fazem apenas dentro das escolas.”
“Para que a permanência no campo seja uma escolha é preciso políticas públicas que invistam e dêem condições de geração de renda, de desenvolvimento para os jovens”
Pedagogia da Alternância e adaptação ao contexto
Embora a pedagogia da alternância tenha chegado ao Brasil com foco em áreas agrícolas, para garantir acesso à educação, ela teve que se adequar aos diferentes contextos sociais do país. É o caso da Escola Jatobazinho, que atende famílias que vivem predominantemente da pesca.
A Escola Jatobazinho está inserida em uma região caracterizada pelo isolamento da população e indisponibilidade de infraestrutura básica como energia elétrica e serviços de saúde, educação e assistência social. Em relação à renda, 75% das famílias ribeirinhas vivem com até um salário mínimo. 85, 48% das famílias vivem da coleta de iscas (tuvira) para comercialização junto ao turismo de pescada como principal atividade econômica, 74,19% vivem da pesca artesanal e 20,94% da agropecuária. 74,20% das famílias da região vivem com até um salário mínimo. (Fonte: Relatório Anual do Instituto Acaia 2017)
As aulas iniciam toda segunda-feira às 11h e alunos permanecem na escola até sábado, às 12h. Nos finais de semana, o barco escola fornecido pela Prefeitura de Corumbá leva crianças até alguns portos da região, local onde elas encontram suas famílias. Os que moram próximos à escola têm oportunidade de ir e voltar todos os dias. Os que moram longe não saem perdendo: a Jatobazinho conta com sala de leitura, brinquedoteca, campo de futebol, piscina e atividades ao pé da mangueira.
O ano possui quatro bimestres letivos e todo o trabalho é feito na escola. “Não buscamos ser ‘conteudistas’, mas fazer com que alunos queiram aprender, tenham prazer em descobrir coisa novas, ler e pesquisar”, diz Sylvia Helena Bourroul. Essa conduta estimula os períodos de estadia em casa, em que crianças aproveitam para olhar para suas vidas, dialogar com famílias, e pensar nas coisas que acontecem ali “com olhar investigativo sobre a realidade”.
Para que esse despertar aconteça, os conceitos pedagógicos ficam presentes em todas as atividade, inclusive nas de lazer. Além das disciplinas “formais”, a ideia é que trabalhar para desenvolver habilidades e competências exigidas na vida cotidiana. “De noite, temos propostas mais lúdicas e livres, como os cinemas, mas mesmo nesses momentos, há uma escolha cuidadosa dos filme e uma votação por parte das crianças”. Isso estimula a tomada de decisão em grupo, por exemplo.
A diretora Sylvia Helena Bourroul conta que, no início, alunos de 16 e 17 anos cursavam o primeiro ano do Ensino Fundamental, pois nunca haviam frequentado a escola. Hoje, após adequação escolar, a Jatobazinho trabalha com crianças a partir dos seis anos (podendo receber alunos até os 17 anos), sem limite de idade por ano letivo.
A Jatobazinho também funciona como um eixo central que reúne ações socioeducativas que envolvem toda a comunidade. Estudo do meio em pequenas propriedades do Pantanal, Encontro com ex-alunos e Evento Literário das Escolas das Águas foram algumas das atividades contempladas em 2017. Paralelamente, uma educadora social visita famílias em suas casas, relatando o trabalho escolar e buscando aproximá-las da instituição.
Com todo o trabalho da equipe escolar, arte, capoeira, esporte, horta, livro, poema fazem o dicionário pantaneiro crescer a cada ano. Mais que isso, deixam seus significados em aberto para que as próprias crianças e adolescentes das famílias ribeirinhas da região possam dar sentido a partir de suas realidades, do que vivem e que buscam transformar.
Em dezembro de 2017, a Câmara dos Deputados aprovou aprovou uma proposta de alteração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB – Lei 9.394/96), incluindo a Pedagogia da Alternância entre as metodologias que melhor atendem à clientela da educação do campo. O texto aprovado é o do Projeto de Lei 6498/16, do deputado Helder Salomão (PT-ES).