“É preciso contar histórias às nossas crianças”, afirma Kianda, mãe de três meninos. Na aldeia remota onde vivem, em um tempo distante, houve um dia em que o Sol simplesmente não se levantou. Então, todos passaram a acreditar ser o fim do mundo. Mas, Kianda, a protagonista do novo livro infantil de Mia Couto, “O rio infinito”, vai nos mostrar que somos parte da natureza e que é possível sonhar outros mundos.
Em entrevista exclusiva ao Lunetas, o autor fala sobre a inspiração para o livro. Além disso, sugere caminhos para engajar crianças e adolescentes a acreditarem na construção do futuro, sem perder de vista o que aprendemos com a História e com as histórias.
“É preciso encorajar as novas gerações para que elas saibam festejar as pequenas vitórias, porque não existe uma vitória que traga a solução total para os nossos problemas.”
Quando tudo ficou escuro e frio, Kianda partiu em busca de histórias para seus filhos. Isso porque ela sabia que nas narrativas ancestrais encontraria o que precisavam ouvir. Então, inspirado em um conto africano que Mia Couto relembrou a partir das trocas com crianças em Luanda, este livro convida a buscar, nas histórias e na escuta, as respostas para tempos de crise. O lançamento do livro no Brasil acontece em 22 de julho.
“É urgente e vital a disponibilidade para reaprender a entender a vida nos dias de hoje”, diz Mia Couto. Nesse sentido, em vez de aceitar a tecnologia que “aparece como a salvadora ao humanizar máquinas e mecanizar pessoas”, ele sugere resgatar a conexão entre os seres viventes de todos os reinos e estarmos abertos ao “abraço materno” da natureza.
Confira a entrevista com Mia Couto
Lunetas – Em recente passagem pelo Brasil, nas trocas com os jovens, você percebeu desesperança e descrédito no futuro, como se já não houvesse nada a fazer. Em “O rio infinito”, diante da incerteza, Kianda decidiu então buscar histórias para “alimentar” suas crianças. De que forma as histórias podem trazer esperança ou convidar à ação?
Mia Couto – Eu acho que começa na escola e na família, onde se reproduz a ideia falsa do nosso passado coletivo. Criaram em nós a ideia de “evolução” quando se fala em natureza e de “progresso” quando se fala nas sociedades humanas. Porém, as coisas não aconteceram assim, de forma linear e previsível. O nosso percurso é feito por entre o caos e o imprevisível, e é assim que a vida e o mundo sempre aconteceram. Não é apenas essa ideia de um passado linear que nos falta. São as histórias que fazem com que este mundo seja nosso, sem nunca nos pertencer. Falta não ter medo de não saber. Mas, como criar, neste mundo e neste tempo, uma outra sociedade? Não creio que ninguém ouse dizer que tem uma resposta para essa pergunta. Apesar disso, uma coisa é certa:
“As histórias — que devem ser criadas por todos, e não apenas pelos escritores — podem nos devolver a esperança que este mundo possa ser reencantado.”
Lembra-se de como conheceu a lenda sul-africana que originou essa narrativa?
MC – Há cerca de quatro anos, eu, Agualusa [José Eduardo, escritor angolano] e Danuta [Wojciechowska, que assina as ilustrações do livro], participamos de uma oficina de escrita infantojuvenil na capital de Angola. A ideia era criar histórias com jovens de Luanda. Fazíamos tudo: imaginávamos, recolhíamos histórias, trabalhávamos juntos na construção dos textos e das ilustrações. Por fim, chegamos mesmo a produzir fisicamente os livros com capas artesanais. Foi então, nessa altura, que me lembrei dessa lenda sul-africana. Recriei-a mais tarde, já de volta a Moçambique.
Você comenta que, em Moçambique, não há palavra para “natureza”, porque o ser humano faz parte dela. O que podemos aprender com as histórias orais africanas que expressam essa integração entre o ser humano e a natureza?
MC – Essas histórias estão enraizadas em sabedorias que tendemos a aceitar apenas na sua dimensão “exótica”. Na verdade, são outros modos de nos entendermos como parte do mundo. A disponibilidade para reaprender a entender a vida é urgente e vital nos dias de hoje, em que a tecnologia é entendida como a salvadora ao humanizar máquinas e mecanizar pessoas.
“Podemos mudar tudo à nossa volta. Mas nada mudará se não tornarmos mais vivo e orgânico o nosso modo de pensar.”
Que histórias estamos contando sobre a natureza e sobre o mundo em que vivemos hoje? E quais histórias deveríamos contar?
MC – Não penso nas histórias apenas no sentido da criação artística. Existe toda uma narrativa de que o mundo nunca esteve tão mal, de que estamos à beira do abismo e que a humanidade deixou de merecer crédito. Mas esse discurso derrotado não serve senão à crença de que apenas milagres ou messias podem nos salvar. Portanto, é importante reconquistar o contexto da História (com H maiúsculo) e lembrar que o tempo presente não é o mais grave e cruel de todos.
Precisamos então resgatar as histórias dos nossos países, muitas vezes esquecidas e intencionalmente apagadas. Vivemos democracias conturbadas, mas nossos pais e avós — no Brasil e em Moçambique — pouco vivenciaram a democracia. As guerras e as ditaduras são esquecidas nas chamadas geografias periféricas. Existem vários genocídios esquecidos, que passam longe do olhar da Europa. A crise da covid-19 não foi novidade. Já tivemos pandemias que mataram um terço da humanidade. É preciso lembrar tudo isso para mostrar aos mais jovens que existe futuro e que vale a pena lutar por mudanças.
Em “O rio infinito”, conhecemos o mar, que é o rio de todos os rios. Ele é memória, guarda histórias e promove conexão com o passado. Já em seu livro “A água e a águia”, as aves se apropriam da linguagem para trazer de volta a água escassa. O que representa essa escolha de deixar os elementos da natureza contarem suas versões da história?
MC – Não é uma escolha. A chamada “natureza” sempre esteve presente nas histórias infantis. Nas fábulas, por exemplo, os bichos nos ensinam a sermos humanos. As florestas, as grutas e as montanhas não eram apenas entidades físicas, biológicas ou cenários das nossas narrativas. Eram um espaço de ritualização, de aprendizagem de uma dimensão divina em que mortos e vivos se reconheciam e conversavam. A ciência e a religião precisavam eliminar esse espaço de crenças que nos dava intimidade e parentesco com o chamado mundo natural. Assim, nesse contexto, a desmistificação da natureza ocorreu há pouco tempo na longa história da humanidade. Não estávamos apenas na natureza, éramos a natureza. Creio que todos sentimos saudade desse aconchego cósmico. Não é por acaso que o movimento ecologista renomeou o nosso planeta como a “mãe” Terra. Todos nós precisamos reconquistar esse abraço materno.
Nos dois livros, a água aparece como força que transforma, leva, mas também devolve, seja memória, sentido ou origem. Diante da crise climática, que tipo de escuta a literatura pode nos convidar a fazer a partir da natureza? O que podemos perceber ou sentir através desse contato?
MC – Acredito que é preciso deixar de ter preconceito e medo quando tentamos nos definir como espécie humana. Onde começa e termina a nossa singularidade? Onde está a fronteira entre a água e as pessoas, entre as criaturas estranhas e o nosso corpo, entre o que é a natureza e o que é humano. Se percebermos que não existe o dentro e o fora, acabamos derrubando uma visão antropocêntrica [de que o homem é o centro], que legitima a nossa condição de proprietários e administradores do planeta.
Durante o Leer Iberoamerica 2025, você afirmou que a literatura começa antes dos livros, ao contar histórias para uma criança. Como esse gesto, permeado pelo afeto, seja nas famílias ou na escola, molda nossa relação com o mundo, com o tempo e com a natureza?
MC – Há uma tendência a pensar que a literatura é feita apenas quando existe escrita, escritores e leitores. O escritor e músico cabo-verdiano Mário Lúcio Sousa fala sobre esse assunto no fantástico “O livro que me escreveu” (Solisluna), recém-lançado no Brasil. Ou seja, o processo da criação do encantamento de uma história começa muito antes da escrita. Começa no momento em que a criança escuta as histórias que lhe chegam pela voz do pai, da mãe ou de qualquer outra presença. Naquele momento, há um laço que se inscreve e cria um vínculo que dá sentido ao mundo. Não é exatamente a qualidade da história que interessa. O que vale é o sentimento da presença, é o saber que é vital essa outra voz, que nos salva da solidão. Sempre que lemos um livro, revisitamos esse momento mágico.
Por fim, o que podemos (re)aprender com o olhar da criança – tão presente em sua obra – para enfrentar tempos difíceis?
MC – A infância não depende da idade, mas da capacidade de nos espantarmos ao longo de toda a vida. Isto é, depende da habilidade de manter os olhos pasmados diante da infinita diversidade do mundo.
“Tudo está nascendo sempre, em todos os lugares. Basta não termos medo e saberemos assistir a esse parto infinito.”