Quem não protagonizou a cena de sair da cozinha com a pia limpa, após lavar a louça, e se deparar, poucas horas depois, com oito copos, quatro pratos e duas panelas, ainda não viveu o filme de terror da quarentena. Pois é, a louça não é só uma miragem que tem se reproduzido de forma exponencial, mas carrega um enredo que diz muito sobre a construção da identidade de homens e mulheres. Por que, por exemplo, os meninos têm dificuldade em assumir tarefas domésticas e qual a relação disso com violência e construção da chamada “masculinidade tóxica”?
Em entrevista ao Lunetas, o psicólogo e psicanalista, Daniel Fauth Washington Martins, pesquisador de temas como masculinidades, gênero e violência pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), explica que homens e mulheres são estimulados a construírem suas identidades a partir de valores distintos, o que leva à divisão de papéis de gênero ou à atribuição de responsabilidades orientadas pelo sexo biológico. E isso tem impactado não apenas o acúmulo de jornadas de trabalho, mas nas diferentes formas de expressão da violência contra meninas e mulheres.
Diferenças na construção da identidade
Fauth explica que, em geral, os meninos afirmam suas identidades a partir da violência, enquanto as meninas são educadas para o cuidado. Essa construção, segundo ele, começa desde a expectativa em relação à cor das roupas de cada um, à divisão das brincadeiras na infância, à narrativa dos desenhos assistidos, e ganha força nas relações dos adultos observadas pelas crianças dentro e fora de casa.
“As crianças reproduzem, sem filtros, aquilo que veem e sentem”
Se um menino cresce acostumado apenas com as mulheres executando as tarefas domésticas e aquelas relacionadas ao cuidado, é natural que ele se sinta desconfortável quando precisar dividir responsabilidades.
Como sempre, a internet se encarregou de polemizar o assunto, repercutindo um vídeo que mostra um menino irritado lavando louça, enquanto a irmã pinta as unhas na cozinha. Nas redes sociais, a escritora Joice Berth defendeu que, em casa, os filhos são educados para a cooperação mútua. “A divisão sexual do trabalho começa dentro das famílias que ensinam desde cedo para suas crianças que existe ‘serviço de homem’ e ‘serviço de mulher’. Daí se desenvolvem os primeiros tijolos subjetivos da construção das masculinidades tóxicas”, afirmou.
Lavar a louça e o valor de atos cotidianos
O Lunetas abraçou a ideia e conversou com o psicólogo Daniel Fauch sobre esse assunto. Para ele, é preciso resgatar o valor intrínseco das ações cotidianas, como lavar a louça, pelo simples fato de manter a casa habitável para todos, sem reforçar as performances de gênero. Afinal, não é justo que apenas as mulheres sintam a dor existencial da sujeira. De onde vem isso?
Confira a entrevista completa.
Lunetas – Um assunto que repercutiu com a viralização do vídeo é a chamada “masculinidade tóxica”. O que significa essa expressão?
Daniel Fauth – Quando se usa a expressão masculinidade tóxica, normalmente se inclui a dimensão do assédio e da violência contra a mulher. O problema é dizer que a masculinidade tóxica se refere ao outro, sem questionar a si mesmo. É didático separar a existência de uma masculinidade boa de uma masculinidade ruim, quando se fala com o grande público. Mas toda identidade é feita da amarração de nós, condutas, crenças e valores: ser homem ou ser mulher não é uma coisa só. Por isso, prefiro falar sobre construções identitárias. A identidade social da mulher está relacionada ao cuidado. “Se eu não cuidar de ninguém, se não for casada ou não tiver filhos, quem sou eu?”
Para o homem, muitas vezes, a afirmação de quem se é passa pela chave da violência.
Qual a relação dessa construção de identidades ao ensinar os filhos a lavarem a louça?
DF – A gente aprende, desde cedo, a agregar valor a cada ação. Os meninos, em geral, brincam com carros. No momento em que estão atrás de um volante, sentem que sabem fazer aquilo. Já as meninas podem ficar com a sensação de que é uma tonelada de metal, perigosa, com muitas engrenagens e botões. Não é à toa que, segundo dados do DPVAT, a maior parte das fatalidades no trânsito é cometida por homens. Existe um valor diferencial no ato de dirigir. No cuidado doméstico é a mesma coisa, pois os meninos agregam valor e se colocam no lugar daquilo que veem acontecer dentro de casa, como no caso de quem cresceu vendo apenas as mulheres lavando louça.
As crianças aprendem brincando. E qual a brincadeira dos meninos? Não é um fogão, uma pia e pratinhos.
Veja os filmes clássicos da Disney: o herói tem a sua espada, sua jornada, mata seus vilões e a princesa o aguarda para casar. Ele não liberta a mulher para fazer faculdade e ir viver a vida dela. Mas esses valores podem ser reconstruídos.
Como os valores em torno do cuidado da casa podem ser reconstruídos?
DF – Por que precisamos entender o cuidado da casa e do outro a partir das chaves do masculino e do feminino?
Temos que ver as tarefas domésticas como coisas práticas: cuida-se da casa, porque se mora ali e se respeita o outro, porque o cuidado precisa ser distribuído ou porque o outro se sente incomodado.
Por isso, é tão importante, desde cedo, essa socialização do cuidado, que agrega algum tipo de propósito às atividades. É diferente dizer “faça, porque você tem que fazer” de “olha, me ajuda aqui, porque é importante” ou “eu agradeço sua ajuda”.
A gente quer entender por que os meninos fogem das tarefas domésticas…
DF – Existe na criação dos meninos uma amarração entre ser homem e ser pessoa. Coisas que “não são de homem” colocam o sujeito em lugar de anulação.
É como se fosse tirado um pedaço da humanidade quando os meninos não performam de acordo com o gênero.
Nos casos de violência doméstica, por exemplo, quando existe um questionamento de papéis, os homens passam a sentir algo negativo, se sentem machucados. Deixo claro que aqui estamos falando de um sofrimento de outra ordem, pois os homens se beneficiam muito do patriarcado.
No Lunetas, escutamos muitos relatos de mães e famílias que buscam criar filhos e filhas a partir de outros exemplos, de que é mais fácil educar uma menina para ser feminista do que um menino para não ser machista. Você concorda?
DF – Eu tenho alguns receios por já ter visto pais e mães usando os filhos como ponta de lança de lutas sociais. Uma coisa é usar saberes, movimentos e tecnologias em prol do alargamento da humanidade da criança, para que ela consiga se expressar mais. Quando os meninos replicam comportamentos problemáticos, cabe conversar em vez de agir de forma normativa ou dizer “não seja”. É mais interessante mostrar às crianças o “perceba” ou o “seja”.
A criança aprende a partir do corpo e das experiências.
Para as meninas é mais fácil perceber quando há possibilidades reduzidas, quando sofrem algum tipo de constrangimento intelectual ou físico. Para os homens, existem muitas recompensas do grupo, porque os meninos também se constróem em grupos. Eu ensino meu filho que ele pode vestir o que quiser e educo para respeitar a homossexualidade. Mas como o grupo de amigos vai reagir?
Como trabalhar formas de construção de identidades mais positivas com as crianças?
DF – Por trás de um menino, talvez exista outro homem ou outra mulher com valores problemáticos, que foram ensinados desde muito cedo que é perigoso questionar. Os grupos de meninos costumam ser punitivos, dar soco, empurrar, praticar bullying. As dinâmicas de socialização masculina são mais fortes em termos de criar unidade e identidade de grupo. Para as mulheres isso também pode acontecer, mas para os meninos isso se dá na base da porrada, do xingamento, da punição. Logo cedo, eles percebem que o grupo será um problema. Então, como ele vai se posicionar sem viver em um lugar de exclusão? Na minha opinião, esse trabalho com as crianças precisa ser feito com a escola e com os pais também. As crianças reproduzem, sem filtros, aquilo que veem e sentem.
Em vez de pensar em punir os meninos pelas suas atitudes, como podemos prestar atenção naquilo que eles precisam?
DF – É muito importante pensar sobre as formas como reforçamos algo em alguém. Quando cumprimento um menino sem um abraço, ele vê que as meninas recebem um tratamento diferente. Em vez disso, costuma-se usar frases como “e aí, campeão?”, “e aí, guerreiro?’, “está forte, hein?”. Não quero fazer uma cartilha de termos corretos ou não, mas devemos pensar em conectar a criança a um senso de individualidade que não depende de identidades coletivas como essas de “grande homem”. Não precisamos reforçar as crianças pela via da masculinidade ou feminilidade, tão comum quando vamos elogiar as meninas usando termos como “linda”, “princesa”, “maravilhosa”. É importante conectar nossas falas ao que está acontecendo, por exemplo: “você me ajudou”, “que legal, você desenha bem”, “você se esforçou”. Isso depende da vontade do adulto de abrir mão de algumas certezas que o gênero traz.
Então, no fim das contas, precisamos dar mais valor àquela pilha limpa após lavar a louça?
DF – As mulheres são relacionadas pelo dispositivo maternal e amoroso. E os homens são subjetivados no dispositivo da eficácia, no quão bem eles performam. A pornografia, por exemplo, é performance, é mostrar, é fazer; não é um contato corporal de sentir ou estar com o outro. Até para falar em ereção se fala em potência ou impotência, e não em desejo.
Os meninos são educados para performar para os outros e perdem o valor intrínseco das ações. Já o cuidado da casa tem esse valor: você arruma a casa, cuida do outro, pois tem um senso de comunidade.
O que um homem faz quando está em processo de desconstrução? Publica nas redes sociais que está cozinhando, cuidando das crianças, varrendo a casa. Legal, ninguém vai cortar o barato da pessoa, mas isso mostra como os meninos crescem pensando na valorização que vem de fora. Por que se lava a louça? Simplesmente para ter a pia limpa. A louça não apenas se reproduz, ela é uma história sem fim.
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