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O que explica a taxa de mortes de gestantes por Covid-19 no país

Foto de uma mulher negra grávida, vestindo uma saia com estampas e camiseta branca, e passando a mão em sua barriga. Ela está sentada (de perfil) em um banco de praça, com o fundo do céu azul e não é possível ver seu rosto. Texto sobre o mortes por Covid-19 entre gestantes

Desde o primeiro mês de gestação, a dona de casa Daniela Ferreira, 31 anos, sentia muito cansaço. Por duas vezes, recebeu atendimento nas unidades públicas de saúde do Recife (PE) e a mandaram de volta para casa, alegando ser uma consequência habitual da gravidez. No sétimo mês, contudo, foi diferente. Daniela foi socorrida novamente, o Estado de Pernambuco estava no pico da pandemia, e a equipe médica avisou a família: ela estava com Covid-19 e precisaria fazer um parto de emergência das gêmeas Maria Alice e Maria Júlia.

Daniela sequer soube da suspeita quando entrou em cirurgia. Após o parto, ela foi transferida para outra unidade pública de saúde, onde ficou internada por 16 dias em coma. Ao acordar, soube de algo que preferiria nunca saber. “Disseram para a minha família que as medicações não estavam funcionando porque eu era usuária de drogas”, conta. A questão é que Daniela não usou substâncias psicoativas. Dias depois, a equipe médica descobriu que havia restos de gestação no seu corpo que poderiam ter prejudicado o efeito do medicamento. Foi preciso pedir desculpas. 

Daniela é uma mulher preta e, para pessoas com sua cor de pele, nem sempre os serviços de saúde são acolhedores. Uma dimensão que foi escancarada na pandemia de Covid-19: ser mulher preta e gestante nesse contexto tem se mostrado um risco ainda maior de morte. Não por uma questão biológica, mas pelo racismo estrutural e a realidade das desigualdades sociais e regionais do Brasil. 

Racismo na assistência a grávidas e puérperas

No país, segundo um estudo coordenado por pesquisadoras da Unesp, UFSCar, UFSC, Imip, Unicamp e Fiocruz, as gestantes pretas têm quase duas vezes mais chances de morrer por Covid-19 do que as brancas. A pesquisa mostra que a probabilidade de uma mulher preta morrer é de 17%, enquanto entre as mulheres brancas é de 8,9%.

O artigo “Impacto desproporcional da Covid-19 entre mulheres pretas grávidas e puérperas no Brasil através da lente do racismo estrutural” (tradução livre), publicado originalmente na revista Clinical Infectious Diseases, a partir de dados coletados pelo Sistema Brasileiro de Vigilância da Síndrome Respiratória, mostra que as mulheres pretas, além de morrerem mais, chegam ao hospital em situações piores, com maiores taxas de internação na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e são as que mais precisam ajuda de aparelhos para respirar.

Cerca de 47,5% das gestantes pretas vêm ao hospital com saturação baixa (quantidade de oxigênio no sangue), enquanto o percentual entre as brancas é de 30,7%. Das que vão para o hospital, 15% das pretas precisam usar respirador contra 7,3% das brancas. “Como as gestantes pretas chegam em situação mais grave, elas evoluem pior e por isso acabam tendo o dobro da taxa de mortalidade do que as mulheres brancas”, explica Débora de Souza Santos, enfermeira e professora doutora da Faculdade de Enfermagem da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), uma das responsáveis pela análise.

Como a média de idade e as taxas de presença de comorbidades como diabetes e hipertensão foram semelhantes entre as mulheres pretas e brancas pesquisadas, a explicação encontrada no estudo para justificar a diferença na mortalidade dos dois grupos perpassa o racismo estrutural Débora explica:

“Os dados reforçam que a explicação não é biológica, mas dos determinantes sociais que geram iniquidades raciais. Fatores sociais, econômicos e culturais estão envolvidos para que a mulher preta tenha mais dificuldades de acessar os serviços de saúde”

Desigualdade que já existia muito antes da pandemia. O estudo “A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil”, publicado em 2017 pela Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz), identificou disparidades raciais no processo de atenção à gestação e ao puerpério. A pesquisa mostra, por exemplo, que as puérperas de cor preta têm mais risco de um pré-natal inadequado, recebem menos anestesia local e sofrem mais com a ausência de acompanhantes. Em 41,4% das vezes, as mulheres pretas não foram alertadas sobre complicações na gravidez, versus 33,8% das brancas. Débora acrescenta:

“Incide sobre a mulher preta os piores índices da saúde. Elas têm menos consulta de pré-natal, precisam peregrinar mais para encontrar atendimento, têm o diagnóstico retardado. A pandemia amplia esse acúmulo de agressões e negligências”

Desigualdades sociais e regionais

“A mortalidade materna entre mulheres negras e pobres sempre foi maior no Brasil, desconheço uma época em que foi diferente”, afirma o médico Elias Melo, chefe da Unidade de Atenção à Saúde da Mulher do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e membro da Comissão Nacional de Assistência ao Parto da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo).

Para ele, na pandemia, a desigualdade também foi acentuada pela falta de investimento na área de assistência obstétrica no Brasil. “É muito abaixo dos padrões de qualidade. O país investe pouco em saúde coletiva. Na pandemia, as equipes ainda foram deslocadas para atender a emergência da Covid-19 e a assistência pré-natal sofreu”, explica. A pesquisadora Débora Santos ressalta também que a dificuldade de acesso, já causada pelo racismo e pela pobreza, torna-se ainda maior quando consideradas as disparidades regionais. 

“Mais de 80% das pessoas no Brasil dependem do SUS e elas são, em sua maioria, pretas. É preciso investir no sistema”, diz Débora. “Em Pernambuco, a rede está concentrada nos extremos do estado. Há pessoas que se deslocam três, quatro horas, para serem atendidas”, exemplifica Elias Melo. De acordo com dados do estudo Demografia Médica do Conselho Federal de Medicina (CFM), o Brasil tem 30,4 mil médicos especialistas em ginecologia e obstetrícia, uma proporção de 14 para cada 100 mil habitantes. Porém, 51% deles estão na região Sudeste contra 4,4% no Norte.

Maior taxa de mortes de grávidas no mundo

As pesquisadoras que mostraram a disparidade de mortes entre mulheres grávidas pretas e brancas por Covid-19 também revelaram em um estudo publicado em julho pelo International Journal of Ginecology and Obstetrics que o país concentra 77% das mortes de mulheres grávidas ou puérperas no mundo. Os dados mostraram ainda que 22,6% das mulheres que morreram não foram admitidas em uma UTI e que 64% estavam sob ventilação invasiva. Em 14,6% dos casos, as mulheres não tiveram acesso à entubação. 

Entre as explicações elencadas na pesquisa, também estão as desigualdades de atendimento e acesso, devido a problemas crônicos da assistência obstétrica. “O Brasil é um país que tem uma taxa de mortalidade materna muito alta. Por outro lado, temos uma vigilância epidemiológica melhor, mais respiradores e mais capacidade de testes que outros países”, afirma Elias Melo. “Por isso, acredito que é preciso observar com mais cautela uma comparação externa. Mesmo assim, é um dado que acende o alerta, pois porque pode ser ainda maior, já que entre abril e maio houve dificuldade em realizar testes”. 

Os grupo de estudo formado pela Unesp, UFSCAR, UFSC, Imip, Unicamp e Fiocruz permanece analisando os dados durante a pandemia, mas aguarda publicação em revista científica para revelar os números atualizados.

Grávidas e o risco da Covid-19
Em abril, o Ministério da Saúde incluiu grávidas e gestantes no grupo de risco para a Covid-19. Em agosto, a Organização Mundial da Saúde (OMS) emitiu um alerta, pois estudos mostravam um maior risco de grávidas apresentarem formas graves da doença. Dados da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) mostram que 28 mil casos foram notificados em grávidas de 10 países, entre janeiro e agosto deste ano, com 365 mortes. 

Entre os fatores estão a dificuldade que as grávidas têm de respirar, principalmente nos últimos meses de gestação; a perda de sangue durante o parto e o esforço da amamentação, que podem ocasionar uma sobrecarga respiratória e circulatória; impedimento de tomar todos os medicamentos; e a dificuldade de realizar uma entubação, caso seja necessário, pelos riscos de trombose, sangramentos e edemas.

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