“Aconteceu quando não era ainda nenhuma vez”. É com essa frase – misto de memória e profecia – que começa o livro “A água e a águia”, do escritor moçambicano Mia Couto. Lançamento da Companhia das Letrinhas, a obra revisita um tema que já passou pela imaginação e pelas mãos do autor: a escassez de água – claro, com uma pitada bem-vinda de fantasia.
A história de “A água e a águia”
Nesta história, assim como em seu romance infantojuvenill de 2004, “A chuva pasmada”, (publicação pela Editora Caminho, de Portugal), a chuva cessa de cair de repente. “Sem aviso, sem explicação: a chuva esqueceu-se de acontecer”, narra o livro. Dessa vez, a vida se torna impossível, e são os animais que tomam o protagonismo dos acontecimentos para reverter a situação. Em uma tentativa de dar fim à seca, a mais velha de todas as águias decide comer a letra “i” do seu nome, transformando-o em água, em um jogo de palavras que deixa o leitor curioso para saber o que vai acontecer.
“A águia e a águia” – “Uma história sobre o poder das palavras e sua relação intrínseca com a natureza, contada por um dos maiores escritores de língua portuguesa”, diz a apresentação do livro no site da editora.
A partir daí, uma série de acontecimentos convida as crianças a pensarem no efeito causa e consequência, em uma brincadeira literária cheia de poesia, borrando os limites – se é que eles existem – entre a linguagem e a narrativa. As ilustrações da edição brasileira também são de Danuta Wojciechowska – artista canadense que fez parceria com Mia em outro cinco livros – e contribuem para o mergulho na história, com cores fortes e vibrantes que parecem gritar a urgência do assunto.
Nesta “fábula poético-ecológica”, como define o escritor Fabrício Corsaletti na contracapa da edição, a vida se tornar viável de novo é algo que depende da sensibilidade de entender que, na natureza, tudo está interligado. A mínima ação aqui gera efeitos acolá, e é daí que vem o potencial educador dessa história: estimular as crianças a enxergar os fenômenos naturais como fruto de uma cadeia de ações quase sempre movida pelas mãos imprudentes do homem. “Mia Couto nos oferece uma visão da poesia e da natureza que não deixa margem para dúvidas: na sua origem, elas estavam interligadas”, diz Corsaletti.
O Lunetas bateu um papo com Mia Couto, em uma entrevista exclusiva que vai muito além de “A água e a águia” e literatura. Falamos de ancestralidade, de poesia, dos rios, e, claro, da possibilidade de enxergar nas infâncias um modo de reverter a nossa tão malcuidada conexão com a natureza. Para ele, o homem precisa superar a ideia que a Natureza está fora de nós. “A própria expressão ‘meio ambiente’ sugere essa exterioridade. E sugere a existência de um centro. E esse centro seria a espécie humana, mas isso é um erro”, defende o escritor.
“Nós estamos dentro da Natureza e ela está dentro de nós. A Natureza é um outro nome da Vida”
Confira o bate-papo com Mia Couto
Lunetas – No seu livro “A chuva pasmada”, você também fala de um lugar onde de repente para de chover, e desta vez fez isso utilizando o poder da própria linguagem. Como foi a escolha de falar sobre a falta de água novamente com as crianças?
Mia Couto – A água é um motivo infinito para criar histórias e detém um valor simbólico que é transversal a todas as culturas. Em Moçambique, é muito clara essa dimensão religiosa da água: os rios e os lagos são residências de espíritos, a chuva – tal como os sonhos – são as falas dos deuses. No fundo, não é o escritor ou a escritora que escolhe a água como tema. É o inverso: o escritor(a) é que é escolhido.
A escassez de água é realidade de muitas crianças brasileiras que vivem em regiões mitigadas pela seca ou pela precariedade de serviços de saneamento básico/exploração indevida de recursos naturais. De que forma(s) a literatura infantil ajuda a aproximar as crianças do debate ambiental?
MC – Converter estas situações em histórias é o melhor modo de as tornar vivas e inscritas no imaginário moçambicano. Essas histórias devem ser de qualidade, imaginativas, divertidas e não concebidas como panfletos, como ferramentas de consciencialização. Não basta uma boa ideia ou uma boa intenção. É preciso que haja sedução e respeito pela criatividade das crianças.
“Converter situações em histórias é o melhor modo de as tornar vivas”
Os povos originários indígenas entendem os rios como um membro da família. Quando o Rio Doce morreu, por exemplo, os Krenak que viviam na sua margem se enlutaram e muitos ficaram em depressão. Essa história quem conta é o professor e historiador Ailton Krenak. A comunhão com a terra e a água”, que é narrada no seu livro, acontece “em um tempo antes do nosso”. Por que você diria que perdemos essa conexão com a natureza, e como resgatar?
MC – Não creio que a ligação com a Natureza seja uma prerrogativa dos chamados povos indígenas. Esse laço existe em todos nós, nem que seja na forma de uma nostalgia. Por outro lado, é preciso romper com a ideia de que a Natureza está fora de nós. A própria expressão “meio ambiente” sugere essa exterioridade. E sugere a existência de um centro. E esse centro seria a espécie humana. E isso é um erro. Nós estamos dentro da Natureza e ela está dentro de nós. A Natureza é um outro nome da Vida.
“É preciso romper com a ideia de que a Natureza está fora de nós”
Neste livro, as águias “acreditavam que as letras as curavam de morrer”. Em um mundo tão fatigado de discursos (polarizados, agora talvez mais do que nunca), você diria que a palavra pode salvar a humanidade?
MC – A palavra não pode ser mistificada, vista como um utensílio separado do pensamento. É preciso, sobretudo, repensar o nosso pensamento. É preciso coragem para questionar certezas, para sacudir o chão por onde caminha o pensamento. A nossa linguagem caiu na armadilha para a qual já Guimarães Rosa nos chamou a atenção: ela banalizou-se, tornou-se numa coisa utilitária. É preciso reencantar a palavra. E isso exige um novo modo de nos pensarmos a nós mesmos.
“A água e a águia” traz muito forte a questão do registro da palavra escrita. Para crianças em fase de alfabetização, é uma janela de encantamento para esse novo universo de códigos que se abre quando aprendemos a ler. O que é ler para você? E o que é ler o mundo?
MC – A origem do verbo “ler” já sugere: vem do radical elegere. Quer dizer, escolher. E não outro modo de olhar, de pensar e de sentir o mundo senão sabendo escolher. Vivemos hoje uma certa inflação de ofertas. Todos os dias somos bombardeados com informações do mais diverso tipo. Ganhamos na quantidade. Mas perdemos na capacidade de eleger. De fazer escolhas que integrem a nossa vontade pessoal com o bem comum.
O trecho do seu livro que diz que “A Terra aprendeu a ler muito antes de nascer o primeiro livro” faz lembrar da importância da ancestralidade e de como nossos antepassados sabiam “ler” melhor o mundo. As histórias podem nos reconectar com essa ancestralidade? Como transmitir esse valor às crianças?
MC – Acho que isso está acontecendo apesar de tudo. Creio que as histórias que as crianças escutam criam esse laço. Escutar histórias é uma necessidade tão vital quanto comer ou beber ou respirar. E isso permanece vivo, mesmo que os pais dediquem menos tempo a contar de histórias.
“Escutar histórias é tão vital quanto comer ou respirar”
O que é ser criança para você?
MC – É a capacidade de me continuar a espantar com a grandeza e a beleza.
Leia mais