“Psicóloga, pesquisadora, bióloga, cientista”. As muitas possibilidades sobre o que ser quando crescer inspiram meninas na vila do Bonifácio e na vila dos Pescadores, comunidades pesqueiras de Bragança, nordeste do Pará. Yasmin, 12, não pensou duas vezes e respondeu de pronto: “Quero ser bióloga marinha”.
Após um histórico de lutas, esse movimento de novos sonhos compartilhados entre meninas que descobriram que podem ir além do espaço que lhes foi reservado – o de cuidar da casa e da família, via de regra – quebra alguns ciclos de gerações de mulheres que se fixaram na comunidade para viver da pesca. “A minha vida era sair para pescar depois da escola. A gente ia com linha ou com rede. Eu subia no barco com a minha mãe e meus irmãos e, na volta, cuidávamos dos peixes, salgando para vender e alguns guardávamos para comer”, conta Aline Queiroz, mãe de Yasmin.
Com a mãe, a menina aprende sobre os peixes que vê todos os dias. “Eu sempre fico olhando a mamãe limpando e cortando o peixe. Já conheço alguns como gó, pescada, mas gosto mesmo do bandeirada”, conta. Da avó, ela escuta as histórias de quem conhece a maré e o tempo como ninguém. “Pode falar de pesca comigo que a minha mão ainda está pelando aqui de tanto que já trabalhei com isso. Já fiz rede, já fui no mangal pegar sururu, saía para pescar e tirava turu dos troncos. Tudo o que eu sei ensinei para os filhos”, conta dona Gracinha, 72. “A Yasmin é inteligente que só. Acho bom ela aprender, pois é bonito isso o que ela estuda. Sei que vai ser feliz, se Deus quiser”, diz a avó, que agora recebe dos mais novos o que trazem da maré, porque a idade não lhe permite mais sair para pescar.
A educação como catalisadora de sonhos
Yasmin tem hoje o que as mulheres que vieram antes dela não tiveram: a oportunidade e o tempo para estudar. Além de cursar o sétimo ano na escola, ela participa do projeto “Ciência é praia das meninas”, desenvolvido por pesquisadores e estudantes do Instituto Tecnológico Federal do Pará (IFPA), campus Bragança, que está formando a terceira turma. A ideia é despertar o interesse nas meninas da comunidade para o fazer científico com temas pesquisados na região em que vivem, o que a leva a aprender mais sobre a importância de seu lugar e como preservá-lo. “Esses projetos não chegavam aqui quando eu tinha a idade dela. Como tive ela com 20 anos e depois já tive outra filha, parei os estudos. Sei como é importante poder estudar ainda nova. O que ela escolher ser eu vou apoiar”, conta a mãe.
Reunidas semanalmente no barracão da igreja da vila, as turmas aprendem sobre ecologia, vida marinha, preservação da natureza, astronomia, saúde da mulher, primeiros socorros, e direitos das crianças e dos adolescentes. Além de fomentar o interesse para a pesquisa na Amazônia entre as meninas ribeirinhas, o projeto atinge outra camada da barreira para o avanço na educação: a situação socioeconômica da comunidade. A maior parte das famílias, que vive à beira do rio e da praia nas vilas do Bonifácio e dos Pescadores, distantes mais de 30 km do centro de Bragança, sobrevive essencialmente da pesca.
Durante o projeto, meninas que têm suas rotinas de estudo e lazer dentro das vilas, sendo que muitas nunca tiveram oportunidade de conhecer os lugares de pesquisa da própria cidade, visitaram os laboratórios do IFPA, tiveram aulas de campo e curso de informática. “A gente incentiva essas meninas a continuarem o estudo. Infelizmente, algumas ainda precisam parar de estudar porque se casam ou têm filhos muito novas. Quando visitam esses espaços, entendem que podem ser elas ali pesquisando também”, explica o coordenador do projeto, professor Cleidson Gomes.
Mostrar na prática a importância da pesquisa científica aguçou a curiosidade das meninas para valorizar o ambiente que vivem. Marjorie, 12, se interessou pela biologia. Agora, ela ensina para as mais novas e para a família o que aprendeu no projeto. “Temos que preservar a praia porque os peixes podem um dia entrar em extinção por causa do lixo que jogam aqui. Esse lixo pode chegar nos peixes e é dos peixes que a gente se sustenta”, explica. Neiva Martins, mãe de Marjorie, percebe a diferença da filha após os estudos. “A gente nem sabia tudo o que o nosso ecossistema poderia oferecer. Hoje, é a Marjorie que ensina. Ela ficou mais interessada pelas coisas da praia, da vegetação e do trabalho do pai dela, que é pescador. Virou monitora da turma nova”, conta.
Neiva tem mais dois filhos. Além de cuidar da família, trabalha como atendente em uma das pousadas à beira da praia e está prestes a concluir o ensino médio. Inspirada na filha, quer seguir carreira acadêmica. Ela lembra como era difícil ver uma menina sair para estudar fora da vila. “Antes o futuro das meninas aqui na praia era casar, ter filhos e ser uma boa mãe de família. Poucas saíram para estudar. Esse projeto ampliou os horizontes dessas meninas aqui dentro da comunidade, e eu fico muito feliz e realizada de ver minha filha estudando. Sei que ela vai ser o quiser”, diz.
Mais meninas na ciência
Incentivar a participação das crianças na ciência é fundamental para despertar novos sonhos. Quando pensamos especificamente nas meninas, entendemos que o esforço para que elas ocupem esses espaços é ainda maior. As mulheres sempre foram minoria no quadro de pesquisadores científicos no Brasil, como aponta um levantamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). De acordo com a entidade, as pesquisadoras totalizam 43% do cadastro nacional. A nível mundial, esse valor desce para 30%, segundo a ONU. Já para os cargos de lideranças, as mulheres aparecem em menos de 10% dos membros da Academia Brasileira de Ciências.
Alguns dos fatores que colaboram para essa situação é a construção histórica e social de que meninas e meninos possuem papéis diferentes desde a infância. “Atualmente, existem iniciativas que tentam reverter isso, como os projetos que incentivam a participação de mulheres em áreas majoritariamente masculinas e estudos que mostram as dificuldades em produzir ciência e lidar, ao mesmo tempo, com o peso do trabalho doméstico e da maternidade, e que resulta na desigual produção científica”, comenta Carla Moreira, socióloga do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Mulher e Relações de Gênero, da Universidade Federal do Pará (UFPA). “Vale lembrar que o avanço na educação de meninas no país é fruto também da luta dos movimentos feministas, que questionaram a educação desigual”, complementa.
A situação socioeconômica também influencia na construção desses índices. Meninas de famílias de baixa renda e que vivem em cidades do interior são culturalmente impedidas de avançar em seus direitos à educação porque precisam cuidar da casa, dos irmãos mais velhos ou até mesmo por se tornarem mães muito cedo. Na região Norte, essa realidade ainda é muito forte, comprovada pelos índices de gravidez na adolescência e abandono escolar, que são os mais altos do país. Por isso, quando uma menina da vila sonha em ser cientista, o acesso à educação é transformador na vida dela e de suas famílias. “Para meninas de comunidades rurais ou da periferia, esses projetos são essenciais, porque valorizam os conhecimentos locais e os articulam com o conhecimento científico, mostrando que elas podem fazer ciência a partir do lugar onde estão inseridas e trazer melhorias transformando suas comunidades”, pontua Carla.
A educação baseada em referências é de suma importância para uma construção social em que as meninas possam se enxergar como futuras cientistas, inventoras e pesquisadoras. “Ainda hoje é difícil dissociar a imagem do cientista de estereótipos como de um homem branco, por exemplo. Incentivar dentro das escolas a visibilidade das mulheres na ciência é importante para que as meninas conheçam a atividade e as histórias de mulheres cientistas. Só assim as meninas poderão se reconhecer e se identificar nessa profissão”, ressalta a socióloga.
Apesar do panorama atual, o índice de mulheres na produção científica é crescente. O CNPq estima que, em uma década, o número de mulheres pesquisadoras vai superar o de pesquisadores do gênero masculino. É para essa virada que as meninas de Bragança e tantas outras interessadas pela ciência estão se preparando. Elas mostram todos os dias que são de uma geração que já nasce quebrando barreiras, naturalizando a ideia de que meninas e meninos podem ocupar os mesmos espaços sociais e que elas podem ser o que quiserem.
Mulheres cientistas
A extensa lista de mulheres que contribuíram para a ciência e tecnologia revela que desde muito tempo foi preciso resistir. Confira algumas das mulheres que carregaram grandes sonhos quando menina e hoje têm seus nomes marcados na história:
- Hatexepsute: médica faraó do Egito Antigo que organizava expedições para buscar plantas curativas.
- Hipátia de Alexandria: contribuiu para os primeiros estudos de álgebra na Antiguidade Clássica, foi professora de filosofia e astronomia, tendo participado de grandes invenções, como o astrolábio (calculadora astronômica) e hidroscópio (aparato de medir líquidos).
- Maria Kirch: astrônoma alemã, foi a primeira mulher a descobrir um cometa, em 1702.
- Marie Curie: polonesa, ganhadora de dois prêmios Nobel em química e física pela descoberta da radioatividade e novos elementos químicos no início do século 20.
- Hedy Lamarr: atriz e cientista austríaca que criou, na década de 1930, a teoria para as tecnologias utilizadas hoje nas redes móveis com Wi-Fi e bluetooth.
- Chung-Pei Ma: astrofísica de Taiwan, liderou a equipe de cientistas que descobriu dois dos maiores buracos negros já observados no espaço.
- Gertrude Belle Elion: bioquímica americana, venceu o Nobel de Medicina, em 1988, por criar medicamentos para os sintomas de leucemia, herpes e HIV/aids.
- Nise da Silveira: médica psiquiatra brasileira, de Alagoas, inseriu o tratamento humanizado a pacientes com transtornos mentais, utilizando atividades artísticas e eliminando os tratamentos agressivos.
- Jaqueline Góes: biomédica da Bahia, doutora em Patologia Humana e Experimental, foi líder da equipe que mapeou o genoma do novo coronavírus (SARS-CoV-2) no Brasil.
Fonte: Kovaleski, N. V. J., Tortato, C. S. B., & De Carvalho, M. G. (2014). As relações de gênero na história das ciências: a participação feminina no progresso científico e tecnológico.
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Na região metropolitana de Belém, o “Clube do pesquisador mirim”, um projeto do Museu Paraense Emílio Goeldi, vinculado ao Ministério da Ciência e Tecnologia e Inovação, também incentiva, há 25 anos, o interesse pela ciência e pela pesquisa entre as crianças. Em 2022, o Clube ofereceu 60 vagas para meninas e meninos do 4º ao 9º ano do ensino fundamental de escolas públicas e privadas da região metropolitana de Belém. Com três turmas anuais, os alunos selecionados estão divididos em frentes temáticas específicas: biodiversidade amazônica, segredos amazônicos e o mundo dos fósseis amazônicos. Além das pesquisas, os participantes têm atividades práticas, como visita ao Museu Goeldi e conversas com pesquisadores. Para fechar cada ano, eles elaboram um produto final (um jogo, uma cartilha ou um kit, por exemplo), a ser disponibilizado no museu para que outras crianças acessem.