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Por que estamos diante de uma onda de livros proibidos no Brasil?

Livros proibidos, suspensos e retirados das escolas tornaram-se uma realidade nos últimos anos no Brasil. Livros infantis ou infantojuvenis. Em setembro deste ano, “O menino que espiava pra dentro”, de Ana Maria Machado (e também a própria autora) foi alvo de ataques virtuais, sob denúncias de apologia ao suicídio. A obra em questão conta sobre um garoto que brinca de ser personagem das histórias que lê, e assim imagina como é desaparecer deste mundo e viver na fantasia. Neste mês de outubro, a polêmica da vez envolvendo a literatura infantil é o livro “Meninos sem pátria”, de Luiz Puntel, acusado por mais de um colégio carioca de incitar ideologias esquerdistas, por contar a história de uma família que vivenciou o exílio durante o regime militar no Brasil e no Chile. Ambos são edições antigas, da década de 1980.

No Brasil, outros casos parecidos aconteceram recentemente. Em 2017, o livro “Enquanto o sono não vem“, de José Mario Brant, foi retirado de escolas da Grande Vitória (RS), acusado de estimular o incesto. Assim como estes, outras obras podem ser citadas, como o livro “Aparelho Sexual e Cia.”, de Philippe Chappuis e Hélène Bruller, sobre a descoberta do corpo na puberdade, que o candidato à presidência Jair Bolsonaro citou como exemplo de obra subversiva e se transformou em alvo de diversas fake news. O candidato chegou a afirmar que o livro fazia parte do mítico “kit gay” distribuído pelo MEC (Ministério da Educação) nas escolas, o que se revelou uma notícia falsa, conforme nota emitida pelo Ministério da Educação e pela empresa envolvida no caso, a editora Companhia das Letras. Na realidade, o termo “kit gay” é uma alcunha criada para descreditar o material “Escola Sem Homofobia“. Clique aqui para ler o posicionamento oficial do MEC em relação ao projeto.

O que estes e outros exemplos têm em comum?

Podemos dizer que existe um movimento de ofensiva contra os livros infantis? Ou a questão é mais profunda, e envolve outras formas de arte como linguagem? Por que tantas obras que abordam temas sensíveis são considerados perigosos, a ponto de serem proibidos e banidos das escolas? De onde vem o medo dos tantos pais, mães, professores e responsáveis que acusaram um romance juvenil que se passa na ditadura de doutrinar as crianças? Como acolher este sentimento?

Na página da escola envolvida no caso – o Colégio Santo Agostinho, no Rio de Janeiro -, vêm sendo publicados aos montes comentários dos mais diversos, desde aqueles que aprovam a decisão do colégio até os que consideram uma censura. Alguns parabenizam o colégio pela decisão, defendendo que as exigências dos pais devem ser vistas pela instituição como demanda de uma clientela. Outros defendem que os pais insatisfeitos devem procurar outra escola. Alguns ainda comparam o comunismo à violência do nazismo, afirmando que ambos devem ser extintos por terem a mesma natureza.

Muitos dos comentários suscitam um debate urgente, sobre o papel da escola diante da insegurança da família, a fim de não reduzir a relação entre elas e as instituições escolares a uma lógica de mercado, em que aquele que paga tem sempre razão. Diálogo mútuo e confiança na capacidade dos professores de selecionar obras de qualidade literária e crítica é fundamental, afinal, um livro não existe por ele próprio, e sim como parte de um contexto social, político e histórico.

Em meio aos ataques que se espalham pelas redes sociais, o escritor Luiz Puntel publicou um vídeo para esclarecer os fatos.

“Por causa da polarização do momento político, alguns pais do Colégio Santo Agostinho, no Rio, reclamaram que o colégio estava doutrinando marxismo a seus filhos e a direção houve por bem retirar o livro, que há anos faz parte da lista de leitura dos alunos de 6ª e 7ª séries. O que há no livro é um olhar sobre um momento histórico brasileiro, isso é verdade. Ou não houve a ditadura? Ou não houve exilados, tema do livro? Ou não houve fechamento do Congresso e intervenção nos 3 Poderes?”, diz Puntel, que é autor de dezenas de livros para crianças e jovens, muitos deles da mítica Coleção Vaga-Lume, que exerceu papel fundamental na formação literária das gerações de 80 e 90.

“O que há no livro é um olhar sobre um momento histórico brasileiro, isso é verdade”

Assista:

O cuidado com as referências

Por outro lado, existe um movimento positivo de observação atenta daquilo que oferecemos às crianças, seja dentro de um livro, na TV, nas prateleiras e demais referências cotidianas que fazem parte da vida de quem convive com elas.

Para continuar no exemplo da literatura infantil, podemos citar o caso do livro “Peppa”, de Silvana Rando, que despertou a atenção para a representatividade negra nos livros infantis. A ativista Ana Paula Xongani levantou a discussão, ao apontar ambiguidades dentro da história, o que suscitou um diálogo saudável não só sobre racismo e discriminação, mas também sobre mediação de leitura. Afinal, é preciso considerar que a criança em formação leitora muitas vezes demanda um cuidado de contextualização dos elementos contidos em um livro de ficção – e tal tarefa é uma responsabilidade compartilhada dos pais, da escola e de toda a sociedade.

Em entrevista recente ao Lunetas, a especialista em literatura para a infância Cristiane Tavares chama atenção para a importância de enxergar o livro para além de sua função “didatizante”, ou seja, a literatura pode fazer infinitamente mais do que explorar conteúdos escolares.

“Reagir a toda forma de censura é fundamental nesse momento, em defesa de uma formação de leitores críticos”

“É preciso que os professores apostem na inteligência e na sensibilidade das crianças ao escolherem os livros que serão lidos e ao mediarem situações de leitura”, defende.

“A experiência da alteridade é um dos aspectos mais potentes que a leitura literária pode promover. Como diz Teresa Colomer, ‘temos a possibilidade de ser outro sem deixar de sermos nós mesmos’”

Divulgação/Arte Lunetas

“Meninos sem pátria”, de Luiz Puntel, foi publicado em 1981. Inspirada em uma história real, a obra conta a história de um pai, uma mãe e sete filhos que vão para o exílio durante o regime militar.

Giulio Proitetti, pedagogo e professor da escola Teia de Aprendizagens, de São Paulo, conversou com o Lunetas sobre o caso de Luiz Puntel. Ouvimos também Annete Baldi, publisher da editora Projeto e mestre em Teoria da Literatura. A fala deles amplia o debate sobre o tema, e reforçam o espírito crítico da educação.

“A única saída para a extinção do ódio e do preconceito é a escuta, o diálogo horizontal e um olhar sensível àquilo que é diferente de mim”, defende Giulio

Leia a entrevista na íntegra:

Giulio Proietti – Essa é uma pergunta complexa que tem sua resposta enraizada em diversas mazelas que ainda vivemos em um país tão rico e desenvolvido como o nosso. Sabemos da crise institucional, política e econômica que o país tem vivido nos últimos anos e que tem, infelizmente, alimentando a desconfiança da população nos serviços públicos (como a educação) gerando uma onda de radicalismo que fez e faz muito mal a sociedade brasileira, principalmente para as instituições de ensino.

É compreensível, além de preocupante, que em situações de crise e desespero cada um de nós tenha menos vontade e energia para despender em projetos coletivos ficando, assim, muito reativos a qualquer tipo de conflito que surja na vida cotidiana.

“Isso empobrece nossa intenção de entender e viver a diversidade, resumindo nossas vidas e de nossas crianças ao simples objetivo de torná-la economicamente ativa”

Mas acredito ainda que devemos entender e ter a esperança na ideia de que o que torna a vida em sociedade tão rica em possibilidades é a existência da diferença e do conflito entre as pessoas e seus pensamentos incrivelmente plurais.

Porém, para que percebamos a riqueza que a diferença pode nos trazer, é necessário que sejamos educados para o amor, e não para a disputa e para o silêncio. Mas, o que temos no Brasil atualmente, de forma majoritária, é uma visão reacionária e utilitarista da educação que ainda acredita que acima do bem-estar coletivo e de uma convivência pacífica e cidadã, estão os conteúdos que, quem sabe um dia, nos tornarão “alguém na vida”. Quem nunca ouviu essa expressão?

Agora, temos uma grande parcela da população, educada nesses moldes frios e tecnicistas, que não sabe dialogar e fazer da alteridade um princípio de vida para sua evolução pessoal (moral e profissionalmente falando) em busca de sua felicidade e daqueles(as) que o cerca.

“Afinal, quem aqui foi ensinado em sua escola a se importar verdadeiramente com o bem-estar coletivo? Se digo isso em sala de aula atualmente corro o risco de ser taxado como ‘comunista’”

Annete Baldi – A atitude da direção desta escola de ceder aos apelos conservadores dos pais de alunos, revela o clima de cerceamento à liberdade de expressão. Censurar um livro que conta uma história (ainda que ficcional) sobre uma família que enfrentou a ditadura é a própria ditadura. Essa proibição demandada por pais de alunos que posicionam-se politicamente à extrema direita é o retrato do que o presidenciável que flerta com os princípios da escola com mordaça. É o fim da picada. Uma volta às trevas.

Fechar exposição de arte, como aconteceu em Porto Alegre, ou proibir a leitura de um livro que relata uma parte da história brasileira que para a direita é melhor omitir é simplesmente vergonhoso.

O MBL [Movimento Brasil Livre] tem contribuído nos últimos tempos para essa onda que vem disseminando valores e comportamentos de violência, falsos moralismos e de extrema direita de forma muito negativa. Agora com a eleição, ainda mais reforçado tendo um candidato representando esses valores.

“Aconteceu nos EUA, tem acontecido em países da Europa e agora aqui no Brasil nós estamos vivendo um momento muito delicado”

Annete Baldi –  Acho errada a posição da escola de ceder, já que vinha indicando a obra há anos. A escola tem que defender os seus princípios pedagógicos. Teria que ter justificado aos pais a importância daquela obra literária, desde sua perspectiva histórica.

Giulio – Já é passada a hora de a população brasileira, principalmente os profissionais que postulam a posição de educadores(as) na sociedade, entender que não é o silêncio e a obscuridade que irá nos fazer ter uma visão mais empática e produtiva em relação às questões profundas e complexas da vida em sociedade como, por exemplo, as desigualdades econômicas e preconceitos das mais diversas esferas. Isto é, a única saída para a extinção do ódio e do preconceito é a escuta, o diálogo horizontal e um olhar sensível àquilo que é diferente de mim.

“Precisamos entender o ‘diferente’ como um aliado da aprendizagem”

Aliás, um ótimo exemplo do resultado concreto que este tipo retrógrado de educação pode trazer, são as vergonhosas posições tomadas, recentemente, por uma parcela da população brasileira que, mal educada acadêmica e politicamente, entrou em um embate com o projeto educacional da Alemanha que trata do nazismo e de suas consequências irrefutavelmente nefastas para a sociedade alemã em sala de aula.

A posição da direção e da coordenação do Colégio Santo Agostinho em simplesmente sufocar o debate vai contra as teorias mais recentes das abordagens pedagógicas que podem produzir um ambiente em que seres humanos se desenvolvam de forma integral, tanto acadêmica quanto politicamente.

A escola Teia de Aprendizagens, na qual atuo como coordenador do ensino fundamental I e educador do 4º e 5º ano, escolhe o diálogo entre os estudantes, os educadores(as) e as famílias para promover um espaço democrático que possa servir de experiência para que as crianças possam, no futuro, atuar politicamente de forma ativa e respeitosa em relação aos espaços e pessoas com nas quais e com as quais convivem. Inclusive, nossas turmas do ensino fundamental II estão trabalhando seu projeto do semestre utilizando exatamente o livro “Meninos sem Pátria”.

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