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Livro de Luiz Puntel é acusado de apologia ao comunismo

Capa do livro "Meninos sem pátria", sobre um fundo branco com grafismos coloridos amarelos, verdes, azuis e cor-de-rosas

"Meninos sem pátria", de Luiz Puntel, foi publicado em 1981. Inspirada em uma história real, a obra conta a história de um pai, uma mãe e sete filhos que vão para o exílio durante o regime militar.

O escritor Luiz Puntel escreveu o romance de ficção infantojuvenil “Meninos sem pátria” em 1981. Não imaginava que, 37 anos depois, a obra seria suspensa de uma escola por conta de um motim familiar. O motivo: um grupo de pais considerou o livro nocivo por considerarem a história uma apologia ao comunismo. O caso ocorreu no Colégio Santo Agostinho, unidade Leblon, no Rio de Janeiro, uma escola católica de ensino privado. “Meninos sem pátria” fazia parte da lista de leitura de estudantes do 6º ano do ensino fundamental.

Em sua 23ª edição, o livro foi publicado pela editora Ática, e é um dos títulos mais vendidos da clássica Coleção Vaga-Lume, que exerceu importante papel na formação de leitores nas décadas de 80 e 90.

O enredo de “Meninos sem pátria” enfoca a história de uma família que se vê obrigada a deixar o Brasil após a redação do jornal em que o pai trabalha ser invadida. Em exílio no Chile, o pai, a mãe e seus sete filhos, vivencia o regime do ditador Augusto Pinochet. Conforme o título sugere, a obra retrata a infância dos personagens longe de casa.

Nascido em Guaxupé, em Minas Gerais, Luiz Puntel é autor de uma série de livros da Coleção Vaga-Lume, como Açúcar Amargo e “O grito do Hip Hop”, indicado ao Prêmio Jabuti em 2005.

Procurado pela imprensa, o autor afirmou ao jornalista Fernando Molica que nunca teve problemas anteriores com o livro, que é adotado em escolas há mais de 40 anos.

Repercussão

Nas redes sociais, a história circula com força desde esta terça-feira, 3, sob as mais diversas perspectivas. Na página Alerta Ipanema, uma postagem afirma que o livro incita à ideologia comunista.

“Bom dia. Os pais do 6o anos do CSA estão indignados com o livro que a escola mandou ler no 4o bimestre. ‘Meninos sem pátria’ conta a história de um jornalista que vive exilado com a família durante o regime militar e mediante a aventura, o livro critica governos militares enaltecendo a ótica de esquerda.”

O cenário literário infantil e juvenil viveu recentemente alguns casos parecidos. Em setembro deste ano, o livro “O menino que espiava pra dentro”, de Ana Maria Machado foi acusado de fazer apologia ao suicídio – clique aqui para ler a matéria sobre o assunto.

De outro lado, editores, escritores e educadores se posicionam contrários à ofensiva contra o livro. Uma rápida busca pelo nome do autor ou título do livro traz centenas de resultados de declarações lamentando a postura tanto dos pais quanto da escola.

O Lunetas procurou o Colégio Santo Agostinho, que não está reportando à imprensa sobre o assunto, e até o momento não se manifestou publicamente. Por telefone, a secretaria do colégio respondeu que o posicionamento oficial, por enquanto, é responder somente aos pais dos alunos.

Ivan Zigg é mulltiartista, compositor e já ilustrou cerca de 90 livros infantis. Em entrevista ao Lunetas, ele lamenta o silêncio da escola sobre a questão, e pontua a importância de as pessoas de organizarem enquanto sociedade civil para fazer valer os direitos da liberdade de expressão e pensamento crítico que a arte como linguagem pressupõe.

“Estamos vivendo uma onda conservadora, e com a ajuda das redes isso tomou uma proporção muito grande”

“Existem até hoje no YouTube uma série de postagens extensas que são pregações de pessoas ligadas à bancada da Bíblia, com uma lista de livros proibidos. Um deles é o “Aparelho Sexual e Cia“, da francesa Helene Bruller, que [Jair] Bolsonaro citou recentemente; é um livro fantástico, que meu filho leu recentemente”, diz o ilustrador, referindo-se ao livro publicado pela Companhia das Letrinhas, e que foi reeditado recentemente.

“Eu atribuo tudo isso à ignorância, as pessoas acabam sendo capturadas pela falta de informação”, afirma Ivan.

“A literatura é alvo disso porque a arte é alvo disso. Nós que somos artistas estamos na linha de frente, e estamos na luta para rechaçar isso tudo”, defende.

“Tenho vários amigos do [Colégio] Santo Agostinho, é um colégio não só tradicional, mas avançado e importante para a educação do Rio de Janeiro, e propositivo em muitos pontos. Eu duvido que a direção deixe de se posicionar sobre o assunto em algum momento. Temos que pressionar e exigir para que isso aconteça, pois eles não podem deixar de responder. Há escolas que só voltam atrás diante de pressão”

Na página da escola no Facebook, há dezenas de comentários contrários à situação. Nas últimas postagens recentes na fanpage, ex-alunos e profissionais do meio da educação e literatura aproveitam o espaço para criticar a postura da escola, alegando que a suspensão deve ser encarada como censura.

“Uma vergonha e um retrocesso para o país essa censura. A nossa História precisa ser contada de forma verdadeira, sem disfarces”, comentou a produtora cultural Suzi Soares.

A repercussão na página chegou inclusive aos próprios envolvidos diretamente na trama do livro, que foi inspirado em um uma história real, o exílio vivido pela família Rabelo. “Estou disposto a ir até a escola para conversar com os professores e explicar melhor a nossa história, e o que sofremos no exílio”, comentou Ricardo Rabelo, ele próprio um dos personagens da obra de Luiz Puntel.

Pedro Ernesto Baptista Montagna é ex aluno do Colégio Santo Agostinho, e relembra a liberdade de expressão que vivenciou, mesmo em meio ao regime ditatorial.

“Estudei lá na época da ditadura e NUNCA aconteceu isso. Lamentável! Escrevíamos frases de filósofos e pessoas de esquerda na parede preta das salas do terceiro ano sem problema algum. É estarrecedor que pais imponham uma pré censura que nem nos anos de chumbo existiu”, conta.

Qual o impacto para as crianças?

Cris Pacanowski, diretora da Pipa Agência de Conteúdos Infantojuvenis, também conversou com o Lunetas sobre o caso, especificamente sobre o que a decisão da escola de retirar o livro da lista de leituras, representa para a formação crítica que a instituição fomenta.

“Estamos testemunhando a censura da literatura infantil em um ritmo frenético”

Algumas famílias com visões de mundo restritas e posicionamentos políticos extremistas vêm pressionando instituições de ensino para censurar obras literárias já consagradas, que são lidas há décadas e que se propõem a lançar reflexões sobre épocas incontestáveis da nossa história”, defende.

Para ela, o atual cenário se deve em grande parte ao conservadorismo que se instalou na sociedade, e tem como objetivo restringir manifestações artísticas nas suas diversas linguagens.

“No que se refere especificamente à literatura infantil e à juvenil, esse tipo de atitude autoritária é um reflexo da falta de leitura e de análise crítica”, diz a agente literária, reforçando a importância de os pais lerem junto com os filhos e se apoderarem do conteúdo a que eles têm acesso.

A editora afirma que uma escola conceituada, conhecida por oferecer ensino de qualidade e ter os primeiros lugares no ranking do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), não deveria censurar uma obra literária sem promover um debate com os estudantes e seus responsáveis. Assim, ela chama a atenção para o que um caso como este simboliza: que educação queremos oferecer? Qual o significado de tornar público um debate como este? Qual o papel dos pais e dos educadores nessa história?

“Não é assim que se educam nem se formam cidadãos críticos capazes de transformar a realidade à nossa volta”

“Acredito também que a leitura dessa obra seja parte de um projeto pedagógico mais amplo, integrado a outras disciplinas e discussões, fazendo um elo, por exemplo, com as aulas e os trabalhos de História. Se censuram o livro porque ele trata dos temas golpe militar e ditadura, esses conteúdos também serão banidos da grade curricular e das provas dessa disciplina?”, pontua.

“Viveremos num país no qual existem livros e perguntas proibidos? Que educação, afinal, esperamos oferecer a nossas crianças e jovens?”

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