A Cultura brasileira teve esta semana uma notícia digna de comemoração. O Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) reconheceu a literatura de cordel como Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro. A escolha foi anunciada pelo Conselho Consultivo da instituição, que se reuniu nesta quarta-feira no Forte de Copacabana, no Rio de Janeiro.
O encontro contou com a presença de Sérgio Sá Leitão, Ministro da Cultura, Kátia Bogéa, presidente do Iphan, e Gonçalo Ferreira, da Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC).
“Poetas, declamadores, editores, ilustradores, desenhistas, artistas plásticos, xilogravadores, e folheteiros, como são conhecidos os vendedores de livros, já podem comemorar, pois agora a Literatura de Cordel é Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro”, anuncia o Iphan.
Para repercutir o tema e estimular uma reflexão sobre o que essa decisão significa, convidamos duas artistas que trabalham diretamente com cordel, a escritora cearense Jarid Arraes, autora do livro “Heroínas Negras em 15 Cordéis” e de mais de 60 histórias em cordel; e a poeta e contadora de histórias recifense Mariane Bigio, do canal Cordel Animado. Mariane também é autora de uma série de livros sobre o tema, como “O baú de surpresas”, “Quebra-nozes em cordel”, e “Um cordel para muitos chapéus”, entre outros.
“O cordel tem um enorme potencial educativo que muitas vezes é subestimado”, diz Mariane.
Leia a entrevista com elas na íntegra:
- Lunetas – Como artista, qual o significado desse reconhecimento?
Jarid Arraes – Como cordelista e poeta, é muito significativo ver que a Literatura de Cordel finalmente ganha um reconhecimento oficial, no entanto gosto de abrir reflexões a respeito de alguns pontos, como a demora desse reconhecimento, é claro, já que a Literatura de Cordel tem sido de profunda relevância para a Literatura Brasileira há muito tempo, formando leitores e se mostrando uma literatura de grande qualidade técnica e criativa. Também é importante entender que o Cordel não está apenas no campo do popular, no sentido de “folclore”, mas em posição de igualdade com todas as outras linguagens literárias, todas as outras formas poéticas. Por isso, para mim, ainda que esse seja um momento bastante feliz, esse também é um momento político, um momento de discussão, de debate, para que avancemos ainda mais na percepção que as pessoas possuem da Literatura de Cordel. Incluindo como a Literatura de Cordel é levada no Brasil, pois ela não pode ser controlada por poucos, já que são os mesmos grupos que fazem as curadorias dos eventos de cordel, que montam os espaços de Cordel nas Bienais, por exemplo. O Cordel precisa ser cada vez mais diverso em seus temas, em seus autores, em suas gerações e em seu alcance. Porque assim será cada vez mais lido e mais valorizado, como merece.
Mariane Bigio – Esse reconhecimento é esperado por nós há muito tempo. Chega para fortalecer o nosso trabalho e para respaldar uma outra conquista que pleiteamos: que o cordel adentre a escola. Que a educação formal possa reconhecer o potencial educativo da literatura de cordel, e que da educação básica até as universidades o cordel possa ocupar o espaço que merece. A literatura de cordel é genuinamente nossa, é autêntica, e tem uma importante carga histórica e cultural.
- Lunetas – Por que escolheu o cordel para ancorar suas histórias?
Jarid Arraes – Escolhi o cordel porque a Literatura de Cordel é acessível, é melódica, é social. Ela passa de geração em geração e consegue transmitir qualquer mensagem, qualquer história, da forma mais lúdica, mais profunda e mais bonita que consigo imaginar. Porque ela tem essa qualidade que vem do tato, que viaja de mão em mão. O cordel em folheto é barato e, por isso, pode ser lido por mais pessoas. Ele é de todos. O cordel em folheto pode ser publicado de forma independente, ele é autonomia, e ninguém pode impedir, ninguém pode controlar. No caso dos temas que escrevo em meus cordéis, eles se tornam mais acessíveis, mais discutíveis, mais fáceis de debater, porque o cordel adiciona leveza e humanidade. Acima de tudo, o cordel precisa continuar vivo e vejo que esse é meu papel como nova geração.
Mariane Bigio – Conheci o Cordel nas aulas de Literatura, quando fui apresentada ao movimento Armorial, criado por Ariano Suassuna. Pesquisando mais a fundo, descobri que Ariano bebeu na fonte da poesia popular, e que se inspirava bastante nos folhetos de cordel tradicionais. Acabei me encantando com a forma como os cordéis são escritos e me divertia bastante ao recitar os versos! Depois me vi desafiada a arriscas meus próprios versos, e, ao me apropriar das técnicas, tomei gosto pela coisa e não parei mais!
- Lunetas – Qual a importância para a criança de ter contato com os cordéis desde a infância?
Jarid Arraes – Eu fui uma criança que teve contato com o cordel desde muito cedinho, lendo os cordéis do meu avô e do meu pai, lá no Cariri, interior do Ceará. E isso fez nascer em mim um grande amor pelo cordel e pela poesia. Hoje sou cordelista, poeta, escritora. Sem dúvida alguma o cordel é responsável por isso. Então vejo que o cordel pode ter também esse papel, o papel de apresentar um mundo de possibilidades, de criatividade, de habilidades. Além disso, o cordel é um grande salto para a imaginação, para que todos os tipos de personagens e assuntos sejam facilitados, acessíveis, alcançados. Para as crianças, isso abre um leque de diversidade muito valioso.
Mariane Bigio – O cordel tem um enorme potencial educativo que muitas vezes é subestimado. Precisamos lembrar que muita gente, décadas atrás, foi alfabetizada graça aos folhetos de cordel, que chegaram a ter um alcance maior que os livros, e mesmo os jornais da época, principalmente no interior do Nordeste.
As rimas e o ritmo desses poemas narrativos são extremamente cativantes, o que conquista os pequenos para a leitura de forma ampla. O cordel é sublime, à medida que é poesia e história ao mesmo tempo, tem musicalidade e enredo, cadência e personagens. É um verdadeiro presente contar uma história infantil em cordel para uma criança.
Mais cordéis para conhecer
Quem quiser conhecer mais essa arte tão característica da cultura brasileira, não faltam opções online para se familiar com a produção cordelística.
No site da Academia Brasileira de Cordel, por exemplo, além de notícias sobre o gênero, há também uma lojinha em que é possível adquirir histórias de cordel, além de uma curadoria das melhores produções do meio. Contemplado por seleção pública no Programa Petrobras Cultural 2005/2006, o livro “100 Cordéis Históricos Segundo a Academia Brasileira de Literatura de Cordel – ABLC”, consiste na pesquisa e publicação de 100 títulos raros de cordel, na íntegra.
“Dos 13 mil títulos que compõem o acervo da academia, cerca de 400 títulos representam a história remota desta literatura, da qual há poucos exemplares disponíveis, mesmo nos acervos especializados. Abordando principalmente o período do fim do século XIX à segunda metade do século XX, o projeto resultará na edição de 100 cordéis selecionados deste acervo, com caixa protetora e 568 páginas no total”, diz o texto de apresentação da obra.
O canal Cordel Animado, do qual já falamos aqui no Lunetas, é uma forma interessante de adentrar no tema. Mariane Bigio traz histórias da literatura clássica e contemporânea em formato de cordel, dialogando com a tradição oral da cultura brasileira.
Já os livros de Jarid Arraes compõem uma amostra significativa da produção literária cordelística contemporânea, com o diferencial de que tratam de assuntos bastante atuais e fundamentais para a formação do senso crítico da criança no mundo de hoje, como racismo, igualdade entre meninos e meninas, representatividade e novas configurações de família. Dentre os títulos que já lançou, estão “As mães de Marina”, “A rainha de turbante”, “Bia é Bi” e “Filha de preta pretinha é”. Acesse o site da autora para saber mais sobre a obra e adquirir seus exemplares.
Curiosidades sobre a literatura de cordel
Antigamente chamada de “pliegos suletos”, na Espanha, e de “folhas soltas”, em Portugal, o cordel chegou ao Brasil primeiramente à Bahia, e dali se difundiu para os demais Estados do Nordeste.
Por volta de 1750, apareceram os primeiros vates da literatura de cordel oral e, mais tarde, o cordel foi batizado de “Poesia popular”.
(Fonte: ABLC)