A mamãe Gabriela “Gaaby” Pereira descobriu a gravidez quando já estava com quase quatro meses de gestação e deu à luz a Benyamin Luiz em junho, época de festa junina. Com síndrome de Down, autismo e surdez, o menino de seis anos ser quem é nunca foi um problema. Para ela, a falta de políticas públicas é o fator que mais dificulta vivenciar uma maternagem tranquila. “A gente não vê pessoas de classe média-alta reclamando de ter filhos com deficiência, a gente vê mães cansadas, exaustas, que estão aqui na parte de baixo porque não têm rede de apoio e políticas públicas”, desabafa.
Gaaby costuma dizer que a vinda de Beny lhe ensinou a viver um dia de cada vez. Entre cirurgias, adaptações no cotidiano, ensinamentos e construções, o Lunetas conversou com Gabriela sobre Beny e o perfil Família atípica, onde ela e o marido Moisés contam o dia a dia do filho, dividem eventos voltados a pessoas com deficiência, processos para fazer com que as leis do país sejam devidamente cumpridas e reivindicações para dias melhores.
Confira a entrevista completa com Gaaby Pereira:
Lunetas – O que a parentalidade neurodiversa mais demanda? Como a rotina foi adaptada para cuidar do Beny?
Gaaby Pereira – Acho que o maior desafio é a falta de informação e acesso a direitos; se os direitos fossem efetivados e a gente tivesse todas as informações, seria mais leve a jornada. A gente nunca encarou o Beny ter algum tipo de deficiência como um problema, todo dia ele nos ensina como se comunicar com ele, como a gente deve organizar a rotina dele, mas essa desigualdade social que faz uma minoria ter muito e a maioria ter pouco são os maiores problemas, traz uma sobrecarga emocional muito grande. A gente não vê pessoas de classe média-alta reclamando de ter filhos com deficiência, a gente vê mães cansadas, exaustas, que ficam na parte de baixo porque não há rede de apoio e políticas públicas que apoiam elas.
De que maneiras o racismo interferiu no desenvolvimento e na infância do Beny?
GP – Para ser sincera, o que mais interfere na infância do Beny é a nossa questão financeira. Como ele ainda é muito pequeno e os pais são muito de luta, não deixamos a questão racial afetá-lo. A gente empodera o Beny desde a barriga. Tenho que chamar atenção para ele não cair, sempre falei para andar de cabeça erguida e não ficar olhando pros lados, para gente olhando feio, torto. Se alguém desdenha dele, se alguma criança olha com mau jeito, ele ignora e segue o seu rumo. Não é que ele não sofra, mas a gente não deixa isso passar.
Aqui em Sorocaba, consultamos um médico que atende crianças com deficiência e, quando mostrei o exame que diz que todos os meus filhos terão uma síndrome ou má formação, ele falou “ah, você não vai poder ter mais filho”, recomendando que eu e meu marido operássemos, “pra vocês não terem mais uma criança assim”. Para o Beny, ele falou “é melhor você pedir para sua mãe comprar um cachorro, não vai ter irmão”. Ele não sabe se eu vou ter outro filho, se a gente tem a intenção de adotar, não sabe de nada, e se meteu num assunto pessoal de uma maneira muito grosseira, agressiva. Eu tinha acabado de saber da minha questão genética, estava pesado para absorver, e ouvir isso de um médico foi terrível. Dei uma resposta bem dada pra ele e não deixei passar.
Quais foram os principais desafios enfrentados durante o processo de matricular o Beny numa escola regular? Para uma criança com deficiência, frequentar a escola pública é diferente?
GP – No final de 2018, eu já pesquisava creches; conversei com direção, equipe escolar, e ele foi muito bem recebido na escola. Em 2021, a escola fixou a equipe responsável pelo Beny (cuidador, auxiliar de classe, intérprete de Libras e alimentação adaptada) e conseguimos ter todo um trabalho para quando ele voltasse presencial. Sempre sentei com a equipe para levar todas as demandas que ele precisa e a gente tentar ajustar o máximo possível para que as atividades sejam adaptadas e os direitos respeitados como aluno na escola regular. Se eu não estivesse ali, presente, acho que não aconteceria. O Beny é um pioneiro nas deficiências que ele tem, e sempre estou buscando o melhor para ele e entendendo o limite do processo no sistema para trazer as adaptações.
Como uma psicopedagoga em formação, quais as suas maiores ambições voltadas à educação? Que tipos de projeto você gostaria de desenvolver no ambiente escolar (ou fora dele)?
GP – A minha história na psicopedagogia sempre foi para ajudar o Beny, nunca pensei em lecionar. Meu talento é mais para orientar profissionais e famílias do que estar presa numa sala de aula. Ter essa formação é importante porque eu percebia muitas vezes que as pessoas me convidavam para dar palestras e, quando viam que eu não tinha formação, não me pagavam por isso, sendo que às vezes eu trazia um conteúdo até melhor do que quem tinha formação, porque convivo com o Beny e com outras pessoas com deficiência. A formação sem vivência não é nada; às vezes a pessoa tem a teoria, mas a prática é totalmente diferente.
Como foi o processo para articular a lei 11.849/2018 sem ocupar cargos públicos legislativos? Existe interesse em levar o projeto a nível estadual ou federal?
GP – Eu escrevi um projeto e entrei em contato com vários movimentos sociais de pessoas com deficiência e com a coordenadoria do conselho da pessoa com deficiência para organizar uma semana da inclusão. Quando finalizou a semana, a vereadora Fernanda Schlic Garcia sugeriu que se tornasse um projeto de lei e perguntou o que eu achava de fazer a semana da inclusão entrar para o calendário da cidade. Eu nem sabia que isso era possível! Entrei em contato com alguns ativistas para reformular o conteúdo, a lei foi aprovada e hoje é um projeto de lei a nível municipal.
Recentemente, teve mais uma lei em aprovação com minha participação: a semana das deficiências intelectuais múltiplas, de 21 a 28 de agosto. Eu não entendia muito que eu fazia políticas públicas. Acho que pelo fato de eu ser uma mulher preta e ver muita gente branca querendo falar de questão racial, comecei a ter uma postura diferente em relação à luta anticapacitista e quis fazer algo com protagonismo de pessoas com deficiência.
Além do Arraiá do Benzinho no ambiente escolar, vocês desenvolvem outras atividades para socialização do Beny?
GP – O Beny gostava muito do arraiá que tinha na instituição que ele frequentava. Como ele não andava naquela época, eu o colocava no meu colo e ele ia mexendo os pezinhos, balançava as mãos, sentia a música no meu corpo e curtia bastante. Quando ele fez três anos, uma amiga o inscreveu num concurso para ganhar uma festa dos sonhos e ele ganhou um arraiá só dele no concurso. Desde então, seguimos fazendo o arraiá porque é uma festa que Beny gosta muito. Em 2017, produzimos um evento com todo tipo de serviço voltado para pessoas com deficiência, como brinquedos inclusivos, skate adaptado, balança, corrida, show, sempre tentando cobrar do poder público essa inclusão para atividades de lazer e acesso à arte em parques, museus, bibliotecas etc.
Como foi o processo de desenvolvimento do Quiet Book? O que motivou a criar o livro?
GP – Devido à nossa questão social, nem sempre conseguimos comprar brinquedos. Para uma criança com deficiência, não basta levá-la para uma instituição, fazer terapia, os trabalhos pedagógicos e vir pra casa, é um processo contínuo. Eu tinha um projeto de ensinar o AEIOU em português, Libras e braile, e entrei em contato com a Denise, uma artesã de bonecos. Ela gostou tanto da ideia que sugeriu fazer pra vender, e juntas conseguimos trabalhar no Quiet Book o símbolo das pessoas com deficiência, questões de coordenação motora e fina, dedoches que contam histórias…
Vocês têm rede de apoio? Em quais aspectos da criação do Beny a rede é de maior ajuda?
GP – A gente não tinha rede de apoio até metade de 2020. A Yasmin, que é uma das melhores amigas do Beny hoje, começou a frequentar aqui em casa e eu conheci a Natália, mãe dela. Por saber Libras, a Yasmin passou a ensinar a mãe a como se comunicar com o Beny, formamos uma turma de Libras e a gente se ajudava muito de “janela”: eu tinha uma rotina pra um lado e ela pro outro, mas às vezes ela conseguia ficar com o Beny e ajudar. Tem também a Márcia, que faz alimentação sem glúten cobrando um valor mais acessível. Cada uma é rede de apoio de um jeito.
Quais as maiores descobertas que vocês tiveram?
GP – Aprender a se amar por quem somos e me posicionar frente à questão racial. Outra coisa que eu aprendi muito foi a viver um dia de cada vez, desde a UTI o Beny me ensina isso. Eu sofria muito pelo passado e para que o futuro chegasse, não curtia o presente do jeito adequado. Os melhores momentos são os que a gente não cria expectativa, se fica com essa coisa de “eu vou fazer isso, aquilo”, quando “chega lá” nem consegue fazer porque até esquece. Hoje em dia eu procuro viver o agora, sem pressa. Sigo minha vida sabendo que eu não sou perfeita e que é um processo de aprendizado.
O Beny me ensinou muito a viver um dia de cada vez, a respeitar meu processo, me desconstruir e construir ao mesmo tempo, ninguém nasceu perfeito e ninguém vai morrer perfeito.
Qual o maior significado da educação inclusiva para você?
GP – A geração passada lutou para que existissem leis, a nossa geração luta para que as leis funcionem, para que as próximas gerações não precisem criar leis, que possam usufruir daquele direito conquistado. A educação inclusiva é um processo em que o Beny vai ter que bater o pé na porta e dizer “tá na lei, tem que fazer”.
Direito não é para se negociar. A gente negocia casa, bolsa, horário… Direitos têm que ser cumpridos.
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Em Sorocaba (SP), o Projeto Ampara, iniciativa encabeçada por Gaaby, oferece capacitação para cuidadores de pessoas com deficiência. Em 2018, o projeto esteve por trás da formulação da Lei Municipal 11.849/2018, que institui o “Dia Municipal de Inclusão e de Luta da Pessoa com Deficiência” em 21 de setembro, e a “Semana Municipal de Inclusão e de Luta da Pessoa com Deficiência”, também em setembro.