Quando crianças e adolescentes não têm um espaço seguro para falar sobre sexualidade, “eles então vão buscar respostas sozinhos”, afirma Marcella Jardim, sexóloga e educadora. Segundo ela, o movimento mais comum é consultar os amigos ou procurar informações na internet.
Mas sites de buscas, redes sociais ou troca de mensagens podem deixar meninos e meninas expostos a conteúdos que não são para sua idade. “A internet está cheia de informações distorcidas, conteúdos inadequados e até perigos como a pornografia, que não educa, mas confunde e cria expectativas irreais.”
Outro risco de deixá-los pesquisar o tema na internet é o processo de adultização precoce. Ou seja, quando têm contato com conteúdos impróprios para a faixa etária ou quando agem de uma forma que não condiz com sua maturidade, seja pela escolha das roupas, os lugares que frequentam, as companhias e os conteúdos que vêem na internet, além da possibilidade de serem abordados por adultos abusadores ou aliciadores.
Foi o que aconteceu com a escritora Jarid Arraes. “Eu tinha 12 anos. Um pedófilo, hoje com mais de 50 anos, me enviou pornografia infantil. Fotos que não pedi e abri sem saber do conteúdo”, lembra.
Jarid explica que só foi entender os abusos que sofreu durante a infância e adolescência anos mais tarde. “Tive uma sexualidade adoecida, que me tornou extremamente vulnerável a predadores muito mais velhos do que eu. Minha percepção de sexo era o que estava disponível na pornografia. Só consegui receber ajuda, cuidar da minha saúde mental e entender os impactos de tudo que vivi muito tempo depois.”
Em sua casa, falar sobre sexualidade “sempre foi um grande tabu, tema proibido, sujo e pecaminoso”, diz. “Tudo o que aprendi foi pela televisão e na internet”. Assim, essa falta de orientação e cuidado na infância também a deixou exposta à violência sexual. Ela revela que desde os três anos de idade foi vítima de familiares. “Quando finalmente tive coragem de contar o que acontecia, aos 13 anos, fui culpabilizada pela pessoa adulta que deveria ter me acolhido e protegido.”
Após uma depressão profunda, a escritora fez dessas memórias dolorosas um livro com poemas sensíveis. Em “Caminho para o grito” (Alfaguara), ela rompe o silêncio e percorre, em versos, um trajeto da infância vulnerável a reflexões da maturidade. Por fim, “escrever e falar a respeito do livro me faz resgatar memórias e alcançar entendimentos muito importantes”.
Existe idade certa para iniciar a conversa sobre sexualidade?
De acordo com a sexóloga Marcella Jardim, falar de sexualidade com crianças pequenas não significa falar sobre ato sexual. “É falar sobre o corpo, os limites, o respeito e o afeto”, diz. Por isso, recomenda ensinar os nomes corretos das partes do corpo desde a primeira infância: seios, pênis, vulva e ânus, por exemplo, pois são as denominações da anatomia humana. Não precisa ter vergonha.
Outra questão é explicar a diferença entre toques de cuidado e toques invasivos. O ideal é combinar que o corpo é privado e que segredos que dão medo ou vergonha nunca devem ser guardados. Reforce também que elas têm direito a dizer “não” e que podem contar com um adulto de confiança.
Nesse percurso, use frases simples e acolhedoras, como: “o seu corpo é seu e ninguém pode tocar nem machucar”, “se você não gostar de algum toque pode nos contar porque vamos te ouvir e te proteger”.
Além disso, tratar o assunto é uma oportunidade de criar vínculos de confiança. “Quando crescemos com essas conversas em casa, de forma natural e adequada à idade, criamos uma base segura para que, na adolescência, possamos aprofundar temas como consentimento, relacionamentos, prevenção e prazer saudável”, explica Marcella.
Para Jarid Arraes, essas boas práticas podem proteger as crianças das experiências que vivenciou. “Cada fase do desenvolvimento infantil vem com seus desafios e em todas elas é possível acolher e ensinar sem ultrapassar limites saudáveis”, reforça. “As crianças entendem o mundo a partir da observação, dos modelos que estão disponíveis para elas.”
Para cada fase, uma conversa
A Childhood Brasil, instituição de enfrentamento do abuso e da exploração sexual contra crianças e adolescentes, e a sexóloga Marcella Jardim apontam melhores formas de abordar o assunto a cada faixa etária:
- Primeira infância (0 a 6 anos): ensinar a nomear partes do corpo corretamente, dizer que corpos de meninas e meninos são diferentes, reforçar que ninguém pode tocar nas partes íntimas sem motivo de cuidado ou higiene, ensinar como e a quem pedir ajuda se sentir incomodado com algum toque, e estimular noções de respeito e limites. Evitar metáforas ou historinhas para responder de onde vem o bebê, pois é possível falar sobre fecundação sem abordar o ato sexual. Independente do contexto familiar, trabalhe a diversidade e a ideia de que família é onde se recebe amor e cuidado.
- Infância (7 a 10 anos): falar mais sobre as mudanças no corpo, hábitos de higiene íntima, sentimentos pelas pessoas e amizades. Reforçar que crianças não namoram e que é preciso respeitar os limites do toque no corpo dos outros e saber pedir ajuda se sentir incomodado. Pode falar sobre o que é abuso sexual de maneira simples. Também já pode conversar sobre autoestima e reforçar que cada corpo é único.
- Pré-adolescência e adolescência (a partir dos 11 anos): aprofundar a conversa sobre as transformações da puberdade. Como lidar com as mudanças físicas, os sentimentos pelas pessoas, relacionamentos respeitosos e consentimento. Explicar sobre menstruação, reprodução, métodos de prevenção de ISTs e contraceptivos. Conversar sobre assédios e exploração sexual em ambientes digitais.
O diálogo também precisa envolver a noção de consentimento. “Saber até onde ir com seu próprio corpo e com o corpo de outra pessoa é uma forma de reconhecer se algo errado está acontecendo”, diz Marcella. No caso de adolescentes, por exemplo, é necessário orientar de maneira direta: a hora que um deles disser “não”, o outro precisa respeitar. Mas, se a relação for com uma pessoa maior de idade, não existe consentimento, e sim abuso. Em relação às trocas virtuais, explique os riscos de compartilhar ou receber fotos sensuais ou de nudez.
Divulgar foto, vídeo de nudez ou cena de sexo sem o consentimento de quem aparece nas imagens é crime, conforme a lei 13.718. A pena vai de um a cinco anos de prisão. Se a vítima for menor de idade, a punição é ainda mais severa. Prevenir e proteger crianças e adolescentes em ambientes digitais é o objetivo do projeto de lei 2628/2022.
Fonte: Safernet Brasil
“Falar sobre sexualidade desde cedo, com a linguagem e os exemplos certos para cada fase, é proteger, educar e fortalecer a autoestima. A família cria um vínculo de confiança para que a criança ou adolescente saiba com quem pode contar.”
Famílias estão mais dispostas a ter conversas que antes eram consideradas difíceis
O primeiro passo é romper o ciclo do silêncio. Ou seja, as famílias precisam entender que falar de sexualidade não implica necessariamente falar de sexo. “Sem um diálogo aberto, as crianças podem sentir vergonha ou medo de tirar dúvidas em casa, recorrendo a colegas que também não têm informações corretas”, explica a sexóloga Marcella Jardim.
Se essas conversas eram consideradas difíceis pelas gerações anteriores, nos Estados Unidos, uma pesquisa de 2023 do periódico Parents apontou que 85% dos entrevistados planejam falar sobre sexo com seus filhos, enquanto 67% já falaram.
No Brasil, 60% dos jovens entre 15 a 29 anos dizem que já conversam com seus responsáveis sobre o tema, conforme mostrou uma pesquisa do Datafolha, de 2022. O dado mostra um avanço em relação há 20 anos, quando o levantamento “Juventudes e sexualidade”, da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), apontou que um em cada três responsáveis não falava sobre sexualidade em casa. Na época, os estudantes entrevistados afirmaram que percebiam as dificuldades de seus pais e cuidadores em abordar o assunto.
Aposte em frases simples e acolhedoras
Para a criança ou o adolescente se sentir confortável, a sugestão é manter uma abordagem simples e sem julgamentos:
- “Aqui em casa a gente conversa abertamente sobre corpo, sentimentos e dúvidas. Se você quiser saber algo, pode perguntar.”
- “O seu corpo é seu. Por isso, só você pode decidir o que gosta ou não gosta.”
- “Não existe corpo perfeito porque cada um é único.”
- “Se alguém tocar em você contra a sua vontade, pode dizer ‘não’ e sempre nos contar, pois vamos te ajudar.”
- “Enviar fotos do seu corpo pela internet para amigos ou desconhecidos é muito perigoso. Não faça isso e nos conte se alguém te pedir.”
- “Você não precisa guardar um segredo que te dá medo ou que te machuca. Se acontecer isso, pode nos contar que vamos te proteger.”
Marcella Jardim reforça a importância de se preparar para esse diálogo diante de tanta informação de fácil acesso sobre sexualidade, embora nem tudo seja seguro ou adequado. É aí que os adultos precisam saber filtrar fontes confiáveis, com base científica e linguagem respeitosa. A sexóloga lista então onde procurar boas referências:
- Livros feitos especialmente para cada faixa etária;
- Instituições como a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Ministério da Saúde;
- Profissionais especializados (educadores sexuais, sexólogos, psicólogos e pediatras, por exemplo) que podem orientar e indicar materiais adequados;
- Projetos educativos (canais, podcasts ou cursos voltados para famílias e educadores). Alguns exemplos são episódios do podcast “Tenda materna”; a música e o livro infantil do projeto “Carinho não pode ser segredo”, da artista e ativista Elisa Gatti; e cursos do Instituto Liberta, que tratam da violência sexual contra crianças e da proteção na internet.
“O mais importante é conhecer o conteúdo antes de apresentar à criança ou ao adolescente, para ter segurança na hora de conversar e responder dúvidas.”
Um panorama global da plataforma Dá o clique, de Portugal, revelou que 10% das pessoas que consomem pornografia tem menos de 10 anos. Onze anos é a média da idade para iniciar esse acesso. Já a pesquisa do Papo de Homem afirma que um a cada cinco meninos brasileiros está viciado em games ou pornografia.