‘Escutar as crianças é um ato de coragem’

Christian Dunker e Cláudio Thebas acabam de lançar um livro sobre escuta, "O palhaço e o psicanalista". Conversamos com os autores sobre como ouvir as crianças

Renata Penzani Publicado em 25.06.2019
Escutar as crianças: Foto do rosto de uma menina. Ela está de mãos dadas e encostada com a cabeça na perna da mulher.
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Resumo

O livro "O palhaço e o psicanalista" reúne o psicanalista e professor Christian Dunker e o palhaço, escritor e educador Cláudio Thebas para discutir a importância da escuta nas relações humanas. "Escutar é um ato de coragem".

“Infelizmente, ainda são poucas as escolas que consideram que preparar alguém para a vida ou para o mercado de trabalho é muito mais do que ensinar matemática, português ou geografia. Todo e qualquer conteúdo que aprendemos vem junto com uma forma de escutar e de dizer. Escutar as crianças é um ato de coragem.”

A citação acima está no livro “O palhaço e o psicanalista“, lançamento da editora Planeta que reúne dois autores de áreas tão distintas quanto comuns para discutir a importância da escuta nas relações humanas, da infância à vida adulta. De um lado, o renomado psicanalista, escritor e professor de USP Christian Dunker – leia aqui a entrevista que fizemos com ele sobre o medo. Do outro, o palhaço, escritor e educador Cláudio Thebas, fundador do LEC (Laboratório de Escuta e Convivência) e do Forças Amadas, grupo de palhaços que atuam no fortalecimento psíquico e emocional de pessoas em vulnerabilidade social.

“Christian Dunker e Cláudio Thebas abordam com bom humor e profundidade um tema comum para ambos os ofícios: como escutar os outros? Como escutar a si mesmo? E como a escuta pode transformar pessoas?”, diz a contracapa do livro, que traz um texto de Vera Iaconelli, psicanalista e diretora do Instituto Gerar.

A escuta em “O palhaço e o psicanalista”

Diferente do que parecem sugerir muitos livros que tratam do mesmo assunto, “O palhaço e o psicanalista” não pretende ser um manual de escuta, e sim um estímulo para que cada um encontre sua maneira particular de escutar – a si mesmo e ao outro. Esse é o ponto-chave da publicação, segundo os autores, ou seja, não engessar a percepção do que é a escuta, mas ampliá-la e torná-la algo próximo do nosso dia a dia.

De acordo com os autores, como sociedade, estamos sempre sujeitos ao fracasso da escuta, por conta principalmente da individualidade que rege nossos meios sociais, do ambiente familiar ao trabalho, passando por nosso papel como pais e educadores. “Cedo ou tarde, estão os dois lados gritando que foi o outro que começou, e que é ele quem me faz fazer o que estou fazendo”, afirmam.

Mas, afinal, o que as crianças têm a ver com isso? Segundo Dunker e Thebas, escutar alguém depende primeiro de escutar a si mesmo, e há uma ressalva a ser feita: por ser importante e imprescindível para uma relação saudável e honesta, não quer dizer que seja fácil. “Escutar com qualidade é algo que se aprende. Depende de alguma técnica e exercício, mas também, e principalmente, de abertura e experimentação”, afirmam. “Certa vez, perguntei ao meu filho de nove anos o que ele queria ser quando crescer e ele me disse que queria criar uma escola para ensinar as pessoas a contar piada”, diz Christian no livro.

“Você, nos seus termos, com a sua história e do seu jeito pode encontrar um jeito de escutar os outros que lhe seja próprio e autêntico”

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iStock

“Na escuta, vale a regra de reciprocidade: se você quer confiança, confie; se você quer autoridade, atribua autoridade; se você quer proximidade, ofereça proximidade” (iStock)

Escuta, um valor inestimável

Nessa época em que tempo é cada vez mais um artigo de luxo, em que cada um mal tem possibilidade de dar conta de si mesmo, “como escutar as pessoas?” parece ser a tal pergunta de 1 milhão. “Como escutar as crianças?”, então, valeria o triplo. Foi exatamente essa a pergunta que o Lunetas fez aos autores do livro.

Afinal, como garantir a escuta de uma infância múltipla e diversa, formada por sujeitos que cada vez mais cedo têm as ferramentas para tomar contato com as grandes questões do mundo e de si mesmas? Mais do que uma simples resposta, Christian Dunker e Cláudio Thebas escreveram para nós um texto que funciona como um verdadeiro elogio à escuta e, mais do que isso, nos convida a retomar, como adultos, a responsabilidade por ouvir o que as crianças têm a dizer, não só em palavras, mas também em gestos e atitudes.

Como escutar as crianças?

(por Christian Dunker e Cláudio Thebas)

É muito importante escutar a criança como um sujeito. Isso significa reconhecer sua responsabilidade no que ela diz. Adultos costumam entender a noção de responsabilidade em sentido contratual ou jurídico; No entanto, responsabilidade quer dizer, antes de tudo, capacidade de produzir uma resposta, ou ainda, etimologicamente, cuidar de uma promessa.

“O pior que se pode fazer com a palavra de uma criança é achar que porque ela não compreende todos os códigos e as nuances das relações humanas ela poderia ficar isenta de responder por sua própria palavra”

Frequentemente, os adultos confundem escutar crianças com obedecer crianças. Por exemplo, decisões importantes que envolvem a família, como mudança de casa, ou de escola, viagens e grandes aquisições, convida a que escutemos nossas crianças. Essa é uma prática muito interessante, tanto pelos pontos de vista inusitados, que muitas vezes aparecem, quanto pelo aprendizado de como se pode participar de uma decisão, sem que esta seja vivida apenas na gramática de quem manda e quem obedece.

“Muitas vezes, deixamos de escutar as crianças porque se fizermos algo que contraria sua demanda, isso trará frustração e desconforto. Isso é só um exemplo de como a escuta é um antídoto contra o despotismo infantil”

Escutar crianças muito pequenas pode envolver mudanças de atitudes corporais, como abaixar-se, alterar a voz ou encontrar a distância que coloca o outro em um bom lugar para dizer. Algo muito importante na escuta de crianças é o acompanhamento de suas investigações e o curso de suas curiosidades. Neste caso, é importante acompanhar muito de perto o tempo de elaboração da criança, o momento e os termos que ela usa para formular suas próprias hipóteses, bem como o vocabulário específico na qual elas acontecem.

Escutar crianças, neste contexto, pode envolver a criação ou oferta de narrativas que permitam o andamento da questão, mais do que respostas, que muitas vezes respondem à expectativa de desempenho e evolução impostas pelos adultos.

O choque de línguas entre crianças e adultos não deve ser negado, mas entendido como um conflito produtivo. Crianças logo percebem que adultos mentem, que eles criam versões “edulcoradas” de fatos e realidades, especialmente as dolorosas, ou seja, é preciso considerar dois extremos problemáticos: a hipocrisia que infantiliza o sujeito, por meio de uma escuta debilizante e protetiva, e do outro o “veracionismo”, pelo qual o pavor de não enganar gera a sinceridade intrusiva ou violenta. Para escutar uma criança como sujeito é preciso supor que sua discordância com os adultos é também signo de sua luta por autonomia e independência.

“Para escutar uma criança como sujeito é preciso apostar que ela é capaz de ser responsável por seus pequenos prazeres e decepções”

7 caminhos para escutar e ser escutado

Apesar de não ter o objetivo de funcionar como um manual que oferece regras prontas, o livro contribui com algumas pistas. São sugestões de gestos, palavras e comportamentos fundamentais na hora de ouvir e ser ouvido, o que vale, é claro, para a relação com as crianças, em casa ou na escola. Dentre elas, está a importância da vulnerabilidade; ou seja, para escutar, é preciso colocar-se aberto ao diálogo e à possibilidade de se mostrar por inteiro. Confira:

  • Falar em primeira pessoa

Fazer isso ajuda a assumir a responsabilidade sobre o que se sente. Por exemplo, você pode afirmar: “Estou triste porque você viajou”, deixando no ar que o outro criou um estado desagradável para você. Em vez disso, a formulação poderia ser: “Estou triste porque eu necessito me sentir seguro e sua viagem me desestabilizou”.

  • Responsabilidade com o que se diz

Existe a tendência de “falar o que o outro quer ouvir”. E dizendo o que o outro quer ouvir, o que a situação quer ouvir, o que a situação exige, o que a rotina impõe, vamos nos acovardando. Assim, vamos também embrutecendo e empobrecendo nossos modos de dizer.

  • Exponha o que sente

Expor com sinceridade o que se sente, mesmo que sejam afetos menos nobres, ajuda a sustentar a posição do autor. Lembre-se: qualquer coisa pode ser dita a qualquer pessoa, desde que encontremos as palavras certas e tenhamos o tempo necessário.

  • Cuidado com a denegação

Quando olhar para uma situação, tente localizar o “não” que a organiza. Evite começar frases por “não”. Principalmente: perceba quando for a quinta ou sexta vez que você repete um “não” ou um “mas” quando responde ao seu interlocutor.

  • Respeite o fluxo: pedir, receber, dar e retribuir

Em geral, as conversas são trocas sociais que começam por uma demanda. Localizar o que alguém precisa é o primeiro movimento que precisa ser respeitado. Falar é pedir, ainda que não saibamos o que estamos pedindo. Compreensão, atenção, dinheiro, amor, obediência, respeito, tanto faz o que está sendo pedido, mas é pelo pedido que a relação de fala é uma relação de troca.

  • Corra riscos, com cuidado

Escutar é um ato de coragem. Nunca se sabe o que virá quando se abre uma porta. Por isso é compreensível a atitude de bolha na qual indiretamente regulamos quem e o que queremos escutar, e quem deve ficar de fora dos nossos circuitos de escuta.

  • Distinguir: culpa, responsabilidade e implicação

Com frequência, produzimos culpados unicamente para não nos perguntar sobre nosso nível de responsabilidade, e nos contentamos com a responsabilidade moral apenas para não confrontarmos nosso próprio desejo. A responsabilidade e a implicação acontecem em silêncio, a culpabilização e a denúncia são ruidosas. Por isso, exteriorizamos em palavras o que não conseguimos conciliar com o silêncio em nós mesmos. Responsabilizar aponta para a solução. Culpar aponta para o problema.

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