A loja de departamento na qual Ruby Lopes, 28, trabalhava por diárias, fechou com a pandemia da covid-19. O pai da filha de 5 anos deixou de pagar a pensão. Desempregada e sem dinheiro, ela precisava encontrar soluções para manter as contas pagas. Foi então que decidiu colocar um botijão de gás e uma fritadeira dentro de um carrinho de mão e sair pelas ruas do Recife vendendo acarajé.
Ruby não está só. A crise sanitária tirou sete milhões de mulheres do mercado de trabalho, estima a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua). O retrocesso na participação das mulheres no mercado formal foi de 10 anos, identificou a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal). O Brasil, que antes da crise já tinha 34% das mulheres no empreendedorismo, viu o número de pessoas que iniciaram um negócio motivadas pela necessidade nesse período voltar ao nível de 18 anos atrás, segundo um relatório da Global Entrepreneurship Monitor (GEM) 2020, realizado no Brasil pelo Sebrae em parceria com o Instituto Brasileiro de Qualidade e Produtividade (IBQP).
Em 2020, o país registrou a maior quantidade de novos empreendedores em um período de 20 anos. Em 82% dos casos, foi a solução diante do desemprego. “A gente foi vender na rua para não passar fome. Eu não tinha apoio da família, alguém para ajudar com dinheiro, então nos viramos sozinhas. Às vezes, a polícia chegava para reclamar, pois era época de isolamento, mas a gente chorava, pedia para ficar”, lembra Ruby.
No Brasil, a cada 100 novas empresas abertas, 52 são de mulheres, segundo a Rede Mulher Empreendedora (RME). O empreendedorismo pode ser uma escolha de mulheres que querem ficar mais tempo com as crianças, pela teórica flexibilidade de horários, mas muitas vezes é a rota de fuga após a maternidade, quando o machismo no mercado de trabalho limita a atuação delas e impede muitas de continuarem a vida profissional fora do lar, elevando a carga de trabalho doméstico.
O empreendedorismo feminino e materno: um caminho de desafios
Segundo Dani Junco, fundadora da B2Mamy, uma aceleradora de negócios para mães empreendedoras, o empreendedorismo materno tem como pano de fundo um cenário no qual 48% das mulheres saem do mercado de trabalho após a maternidade, até os dois primeiros anos de vida dos filhos. Isso acontece por decisão própria, pela ideia de que isso te deixa mais perto do bebê; demissões; ou falta de estrutura da empresa para manter a amamentação, por exemplo.
A analista de negócios do Sebrae e pesquisadora em empreendedorismo feminino, Lívia Moura, detalha os três principais motivos que levam a mulher ao empreendedorismo. O primeiro deles é quando há, de fato, uma oportunidade de negócio, na qual a mulher se identifica com um mercado específico e quer empreender. O segundo motivo é para alcançar a independência financeira, o que pode significar também sair de uma situação de violência doméstica. A terceira causa é justamente pela maternidade.
“As pesquisas mostram que, nesse caso, muitas empreendem por necessidade. Seja porque a rotina de trabalho não contempla questões específicas de uma criança pequena ou porque o papel de cuidadora, na sociedade, ainda é atrelado à mulher”, explica.
No Brasil, 53% das empreendedoras são mães, segundo dados da RME. Uma em cada quatro tem filhos com cinco anos de idade ou menos. Cerca de 70% das mulheres buscam o empreendedorismo como opção após a maternidade. O motivo que as leva a entrar nesse ramo pode influenciar nos desafios que enfrentarão mais à frente. “Quando eu entro num negócio por oportunidade, eu estudo o mercado, identifico potencialidades, ou me junto a parceiros que fazem isso”, exemplifica Moura, do Sebrae. Isso significa mensurar o capital, os riscos e a conjuntura econômica.
Por outro lado, quando a entrada no empreendedorismo vem pela necessidade, as barreiras são outras. Geralmente não existe um fluxo de caixa, a pessoa está precisando de dinheiro para o básico, como alimentação e moradia. “Imagina você sair de casa para fazer grana quando está faltando comida? Você vai acabar aceitando uma proposta indecente, fazendo algo com menos qualidade, vai acabar errando e perdendo dinheiro. Há um recorte social”, afirma Dani Junco.
“É um negócio mais difícil, pois você não tem ideia do seu público, não tem clareza de dividir o que é custo de operação. Há chances de misturar o orçamento de casa com o do negócio”, complementa Moura. Também costuma faltar uma rede estruturada de apoio na administração, o que impede a mulher de negociar turnos para ficar com os filhos.
No caso de Ruby, por exemplo, ela não tinha com quem deixar a filha. A menina ia junto, no carrinho de mão, e passava o dia vendo vídeos no celular, enquanto a mãe trabalhava. “A gente foi vender numa região do Recife que o pessoal não aceitava o preço do aracajé a R$ 10, então ganhávamos por dia no máximo uns R$ 40”, lembra. Para conseguir dinheiro para comprar os primeiros materiais, Ruby precisou vender o celular, um dos poucos bens que possuía.
Para empreender é preciso ter rede de apoio
Ter uma rede de apoio é fundamental para a mulher mãe que está empreendendo, seja por oportunidade ou necessidade. “Maternar e empreender é fazer contas e saber com quem contar. Você tem que tomar decisões, saber se vai trocar de emprego, se vai ter um segundo filho. E listar quem são as pessoas que podem te apoiar financeira e emocionalmente”, explica Dani Junco. Apoio significa poder dividir os cuidados da criança com outra pessoa, seja o pai, avós ou até colegas de trabalho e, com isso, poder se dedicar ao lado profissional, investindo para que o negócio dê certo, ressalta Moura.
A professora Maria Eduarda de Santana, 24, sabe bem a diferença que faz ter uma rede de apoio. Começou a fazer doces para vender há seis anos, quando ainda era estudante universitária. A forma de ajudar a custear os estudos significou uma fonte de renda para a casa nos anos seguintes. Há dois anos, ela teve um filho e, sem o apoio da mãe, não teria conseguido manter o negócio funcionando. “Não é só entregar a encomenda, eu preciso comprar o material e produzir. Nesse intervalo de tempo, meu filho fica com a minha mãe. Se não fosse ela, eu não teria como ter sucesso”, comenta.
Ter esse suporte, porém, não alivia o cansaço de conciliar a vida materna com a de empreendedora, outro desafio para as mulheres. “Se eu tenho uma encomenda para entregar às 8h, eu preciso acordar muito antes para dar assistência a ele, organizá-lo e dar para minha mãe, para então começar a trabalhar. Eu fico cansada, com sono desregulado. Quando chego em casa, só quero dormir, mas também preciso cuidar dele”, relata.
Neste momento, a venda dos doces e salgados é a única renda de Maria Eduarda, já que ela e o marido estão desempregados. Esse é um cenário comum a muitas mulheres no depois da pandemia, segundo um estudo realizado pela ONU Mulheres e a Organização Internacional do Trabalho (OIT). De acordo com o levantamento, o trabalho como empreendedora é a fonte de renda, atualmente, de 75% do total das entrevistadas. Além disso, antes da crise, 56% contava com o rendimento do negócio; depois, essa proporção passou para 91%. A pesquisa identificou que 27% das entrevistadas começaram a empreender depois do início da pandemia.
Outra pesquisa, da Rede Mulher Empreendedora, mostra que metade das empreendedoras com filhos alegam que o fechamento das escolas impactou a rotina de trabalho, sobretudo daquelas com filhos entre três e 11 anos. Isso demonstra que as organizações de atendimento à criança também são parte dessa rede de apoio que permite a uma mãe se dedicar ao seu negócio. “Independente do perfil sociodemográfico, as mães empreendedoras precisaram trocar o tempo dedicado ao negócio por tempo de cuidado com os filhos, a casa e as atividades escolares. Sem escolas, coube às mães a atenção aos filhos em tempo integral”, diz um trecho da pesquisa da ONU Mulheres.
Empreender significa ter mais tempo?
Essa realidade expõe uma contradição, já que 41% das mulheres afirmam que decidiram empreender no pós-maternidade para ter mais tempo com a família e 32% alegam que pela flexibilidade de horário. De acordo com a ONU Mulheres, apenas 16% delas entram no empreendedorismo por oportunidade. Esse foi o caso de Lorena Gouveia, 38. Há 11 anos, quando planejou engravidar, ela trabalhava numa empresa franqueadora de grandes marcas.
“Minha rotina de trabalho era muito intensa. Mal tinha tempo para me alimentar. Quando planejei meu primeiro filho, sempre quis dedicar mais tempo a ele”, conta. A intenção era retornar ao mercado de trabalho após o primeiro ano de vida dele, mas, depois da maternidade, o desejo de empreender veio mais forte. “Queria continuar minha rotina de dedicação ao meu filho e também acompanhar de perto toda fase de seu desenvolvimento. Mas, precisava trabalhar. Precisava de uma renda. Tive que buscar formas de desenvolver minha carreira profissional e conciliar maternidade de forma harmoniosa”, lembra.
O risco de acreditar que vai ter mais tempo é romantizar essa transição de carreira e, muitas vezes, ser surpreendida pelos desafios de manter o próprio negócio. Na prática, 9% das mães empreendedoras se sentem sobrecarregadas pelo acúmulo de trabalho e responsabilidades, e 94% consideram que as múltiplas jornadas são um desafio muito pesado, segundo a ONU Mulheres. “Não é fácil! Tem que ter rotina e persistência. Costumo fazer um planejamento semanal para lidar com a rotina da casa e do trabalho. Por ficar mais em casa, às vezes, este é o maior desafio. Percebi com o tempo que precisava definir bem o horário de trabalho, mas nem sempre isso é possível”, conta Lorena.
A organização, nesses casos, é um dos pilares que podem garantir o sucesso do negócio, garante Lívia Moura, do Sebrae. Outro trunfo é poder buscar qualificação e capacitação. “Quanto mais conhecimento você tem, mais autonomia você tem e mais respeitado o seu negócio é”, diz. É preciso ainda trabalhar a questão emocional, já que muitas mulheres iniciam um negócio com autoestima baixa. Na pesquisa da ONU, por exemplo, apenas 29% das respondentes concorda que está preparada para continuar empreendendo e só 12% acredita que a vida pessoal e profissional está em equilíbrio. “A gente precisa desmistificar a ideia de que você precisa ser boa em tudo. A mulher, quando empreende, não é só para ela. É para mudar a realidade dela, de uma família. É uma ação de impacto”, diz a analista de negócios do Sebrae.
Foi o que aconteceu com Ruby, que viu o negócio engrenar depois de um ano e três meses nas ruas, montou uma cozinha dentro de casa e botou a loja de acarajé nos aplicativos de delivery. “Agora, pretendo aumentar a divulgação e abrir um ponto físico. E o principal: sei que minha filha nesse tempo nunca deixou de brincar, de ser criança, que era uma preocupação minha.”
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