“Essa escola é mágica?”, pergunta Júlia, de cinco anos. Ao lado dos colegas, que dizem ser habitantes de diferentes planetas, ela se encanta com o universo que extrapola as paredes de concreto: hortas, cozinha aberta, brinquedoteca, parquinho, redário para as horas de leitura, um foguete aterrissado no meio do refeitório. A Escola Municipal de Educação Infantil Nelson Mandela, localizada no bairro do Limão, zona norte de São Paulo, é uma referência para a educação pública.
A escola ganhou uma série de prêmios por suas iniciativas pedagógicas, entre eles o 6º prêmio “Educar para a Igualdade”- Categoria Escola, promovido pelo CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades) pelo projeto Azizi Abayomi, um príncipe africano. Além disso, homenagens da Câmara municipal de São Paulo por demais projetos.
Podemos dizer que escola acertou na receita: uma mistura de projetos inovadores e engajados, com boa integração da comunidade escolar e uma alta dose de fantasia, bem à moda literária. “Tudo aqui ganha vida”, afirma a diretora Cibele Racy. Os personagens dos livros passam a ser encenados pelas crianças, há boatos de que as bonecas saem para jogar futebol de noite e até as salas de aula passam a se chamar “espaços de convivência”, batizados com o nome de planetas.
“Eu sou de Marte”, garante Sofia. E é assim que o lúdico habita os territórios da escola, que ganham significado e despertam nas crianças uma relação afetiva e de cuidado com o espaço, os objetos e uns com os outros. “Se os brinquedos ganham vida à noite, eles precisam de um lugar organizado e limpo para morar durante o dia. E as crianças não cuidam da sala de leitura, mas da casa da vovó Monifa, que veio do continente africano cheia de histórias para contar”, diz a diretora, que mergulha junto nas aventuras imaginárias.
São 206 crianças matriculadas, de quatro a seis anos, que escrevem novas histórias das 8h às 16h. Durante toda a semana, uma tabela de revezamento garante que as sete turmas, compostas por idades mistas, utilizem todos os espaços que a escola oferece.
Novas estruturas inclusivas na educação pública
Inaugurada em 1955, a Emei Nelson Mandela nem sempre funcionou dessa maneira. Cibele Racy conta que, quando assumiu a diretoria em 2004, a estrutura pública tinha ares de abandono e descaso. Foi então que começou o que ela chama de “reforminha física”. A olhos vistos, a renovação não significou apenas derrubar velhas estruturas e surgir com novas cores, mas construir as bases de uma nova forma de enxergar a educação, por meio de espaços afetivos e participação da comunidade.
E se a mudança deu um novo corpo àquele território, seria com o processo de implementação da Lei 10.639 – que tornou obrigatória a inclusão da “História e Cultura Afro-brasileira” nos currículos – que ela assumiria definitivamente uma nova personalidade: a de combate ao racismo e a qualquer tipo de preconceito desde a primeira infância.
“É um processo que acontece na Educação Infantil, mas que vai além da criança”, afirma Cibele. Segundo ela, as ações envolvem as famílias, os profissionais da escola e o próprio bairro em uma espécie de despertar e empoderamento coletivo. Prova disso foi a união dos vizinhos na mobilização em resposta a pichações racistas nos muros da escola, em 2011.
“Sou uma mulher negra, mãe de três filhotes, que luta contra o racismo e por escola pública de qualidade. Tudo o que eu estudo de inovador sobre inclusão da diversidade vejo aplicado na escola, sou bem apaixonada pela proposta pedagógica”, declara a mãe de uma aluna, Alda Helena Machado.
A pedagoga afirma que sua filha Naiana, de cinco anos, fruto de uma relação interracial, desenvolve o pensamento crítico e vai fortalecendo sua identidade por meio das experiências na escola. A mãe nota isso em pequenas atitudes como quando a filha questiona a torneira aberta em casa ou fala com segurança e naturalidade sobre seu cabelo crespo: “Cada um é de um jeito diferente, não é mesmo, mãe?”.
Alda Machado foi convidada pela escola para realizar uma conversa com as famílias sobre inclusão social. Os diálogos temáticos mediados por mães e pais é também uma maneira que a Emei Nelson Mandela encontrou de não hierarquizar as relações entre escola e família, abandonando a noção de que “quem ensina é a escola”, mas propondo o compartilhamento das responsabilidades de cuidado nesta área.
Território de encantamento e autonomia
A desenvoltura e disposição das crianças para uma boa conversa é uma característica que chama a atenção pelos corredores. Elas querem mostrar o espaço, contar suas atividades e dizer como é que fazem para explorar esse mundo encantado que se apresenta a elas do portão para dentro. Com o objetivo de tornar a aprendizagem mais significativa, cada ambiente possui um projeto específico de gestão e cumpre um papel dentro da proposta político-pedagógica da escola.
E entre o plantio das hortaliças e a lida com a higiene e o desperdício de alimentos após as refeições, as crianças também dedicam o tempo à culinária, em que aprendem a preparar algumas receitas saudáveis. Se estamos falando de experiências “mão na massa”, então a Emei Nelson Mandela é mesmo um bom exemplo de como transformar a teoria em prática de um jeito muito saboroso.
“Os pequenos detalhes como substituir as colheres pelo garfo e a faca, servir a própria comida e ajudar na organização do refeitório, fazem com que elas ganhem autonomia”, afirma a professora Maria Heloísa dos Santos.
“Diretores por um dia”
Todos os dias, uma equipe composta por uma criança de cada turma, uma professora e outro colaborador da escola, são escolhidos para a atividade “diretores por um dia”. Eles recebem uma medalha e passam a brincar com as novas responsabilidades assumidas. É um dia dedicado à gestão do próprio tempo e à livre circulação entre os espaços. Se estiverem dispostas, as crianças podem identificar problemas, ajudar a mediar conflitos e participar de algumas reuniões com a direção para pensar em soluções. “Ninguém aprende nada se não confiar nas suas habilidades”, sinaliza a diretora Cibele Racy. Um momento como este passa então a ser uma oportunidade de desenvolver a autoestima. Para Alda Machado, mãe de Naiana, essa é uma atividade muito interessante que fortalece a identidade das crianças, pois faz elas perceberem que têm voz e podem ser escutadas.
“Viva o vovô Madiba!”
Se os muros que construímos no mundo carregam uma mensagem daquilo que somos, qualquer outro convite de entrada ao Emei Nelson Mandela talvez não soasse tão compatível com sua missão. O rosto estampado do líder sul-africano, que lutou pelo fim da discriminação instaurada pelo sistema do Apartheid e se tornou um ícone das causa humanitárias, dá as boas vindas ao prédio arborizado.
Antes nomeada Guia Lopes, uma referência ao líder de tropas brasileiras na Guerra do Paraguai, a escola passa a reivindicar em 2013, após a morte de Nelson Mandela, a mudança de seu nome. Foram três anos de mobilizações até a chegada oficial do novo patrono, celebrada com a pintura dos muros e uma comemoração denominada “Viva o vovô Madiba”, que faz referência ao apelido carinhoso de Mandela. Assim como outras celebrações na escola, a festa foi recheada de cores, danças e ritmos africanos.Para a diretora Cibele Racy, o sorriso do militante negro e Prêmio Nobel da Paz foi a resposta definitiva às pichações racistas de anos anteriores. “No muro se faz, no muro acontece”.
Afinal, ali tudo parece ser uma mistura de encanto com histórias reais, que juntas constroem a narrativa pedagógica que busca acolher toda a diversidade. Talvez seja esse o segredo que faz Júlia acreditar num lugar mágico e os bonecos ganharem vida durante a noite. E enquanto as árvores que refrescam a escola crescem, elas vão enraizando a mensagem de Nelson Mandela, como quem passa o bastão de um legado: “A educação é a arma mais poderosa que existe para mudar o mundo”.
Família Abayomi
Entre as iniciativas da escola, está a gestação da família Abayomi. São bonecos de pano em tamanho real que passaram a integrar a família escolar. Como tudo ali, eles tem sua história: Azizi Abayomi é um príncipe negro africano que vem ao Brasil e se casa com Sofia. Da união, nasce Dayó e Henrique. A família Abayomi é uma espécie de “mito criador” do debate racial com as crianças na escola. Como existe afeto em torno dos bonecos e das bonecas, cada passo da família (casamento, nascimento dos bebês, férias, etc.) abre espaço para atividades lúdicas e para debates sobre racismo, inclusão, resgate da ancestralidade, entre outros temas que incentivam o respeito às diferenças.