“O ser humano é movido pelo desejo. Mas será que o desejo nos empurra para a educação? Para ser professor, é preciso ser por inteiro”. A afirmação é de Inês Kisil Miskalo, pesquisadora especialista em teorias de aprendizagem, metodologia e didática.
Essa foi uma das falas impactantes que emocionou o público presente no encontro Educação do Século 21, realizado em São Paulo pelo Instituto Ayrton Senna (IAS). Com o tema “Alfabetização: dilemas do passado e caminhos para o futuro”, o evento convidou profissionais de diversas áreas do conhecimento para refletir sobre os rumos da Educação no Brasil.
Dentre eles, a psicóloga Viviane Senna, diretora do IAS, o economista Ricardo Paes de Barros, a fonoaudióloga e neuropsicóloga Rochele Paz Fonseca – que se apresentou por vídeo, devido à licença-maternidade -, o professor especializado em neurociência Augusto Buchweitz, do Instituo do Cérebro do Rio Grande do Sul, a professora e gestora de Políticas de Aprendizagem do IAS e uma série de outros pesquisadores de assuntos correlatos à educação e ao desenvolvimento humano, além de secretários de Educação e agentes políticos de diversos Estados, que discutiram a implantação de políticas públicas.
Educação integral: formando sujeitos por inteiro
“O Brasil é como um espadachim que precisa lutar em duas frentes diferentes ao mesmo tempo: as demandas cognitivas do passado e os desafios do século 21”, disse Viviane Senna durante a fala de abertura do encontro, que teve como fator central a Educação Integral e sua potência para formar uma pessoa em sua plenitude, entendendo suas demandas biológicas, materiais, sociais e emocionais.
Para ela, o Brasil tem um déficit significativo em relação a países desenvolvimentos em termos educacionais, principalmente porque não fizemos nossa “lição de casa”, no sentido de garantir que todas as crianças dominem as capacidades básicas para se desenvolver.
Habilidades cognitivas x Habilidades emocionais
A psicóloga destaca duas categorias de habilidades essenciais para um indivíduo ser bem-sucedido na vida: as cognitivas e as socioemocionais. No segundo grupo, estão capacidades como resiliência, colaborativismo, superação, persistência, equilíbrio, flexibilidade, empatia, entre muitas outras características fundamentais para determinar se uma pessoa tem ou não o que é preciso para conviver em sociedades cada vez mais multiculturais, etnicamente diversas e fluidas em relação a paradigmas superados no passado.
Em linhas gerais, competência socioemocionais se referem à capacidade de mobilizar, articular e colocar em prática conhecimentos, valores, atitudes e habilidades para se relacionar com os outros e consigo mesmo, assim como estabelecer, atingir objetivos enfrentar situações adversas de maneira criativa e construtiva.
“Habilidades cognitivas não são mais – e acho que na verdade nunca foram – o suficiente”
“É preciso saber trabalhar em time. Não é mais opcional desenvolver um indivíduo unilateralmente. Cada vez mais, o mundo vai demandar sujeitos capacitados emocionalmente”, defende Viviane Senna.
Para exemplificar como os países desenvolvidos valorizam e colocam em prática o conceito da educação integral, ela trouxe um case educacional japonês. ”
No Japão, costuma-se trabalhar com brinquedos gigantes, por exemplo, grandes demais para uma criança manejar sozinha. Com isso, a ideia é articular noções de colaboração, integração, convívio, alteridade, etc”, explica.
Outro exemplo destacado é o de Singapura, que regularmente leva as crianças para conhecer outras culturas, como parte do planejamento escolar.
De acordo com o conceito da educação integral, todos os territórios que a criança habita simbolizam experiências potentes de aprendizado. Assim não é somente a escola que deve estar preparada para acolher seus aprendizados, mas também a cidade, a família, o espaços culturais, e todos os ambientes de convívio social.
“Tendemos a achar que nossas decisões são racionais, mas são fundamentalmente emocionais. A razão é o que dá musculatura para o objetivo se concretizar”, explicou a psicóloga.
“As capacidades socioemocionais são como um currículo oculto, invisível. Nós o usamos o tempo todo, mas não o percebemos”
“E qual é a escola que está preparada para estimular isso?”, questionou Senna, após exibir um vídeo em que mostra as transformações pelas quais as profissões passaram desde o século XIX: a de professor é a única que permanece basicamente intacta, continuando o modelo de aluno-professor, carteiras enfileiradas e transmissão verticalizada de conhecimento. “Estamos oferecendo às crianças de hoje uma educação de dois séculos atrás”, disse.
“Nossa educação educa as pessoas pela metade, e isso implica em decisões futuras tomadas pela metade. Educação plena é aquela capaz de formar indivíduos por inteiro”
Alfabetizar não é só ensinar a ler palavras
O processo de alfabetização, que neurobiologicamente falando tem sem seu ápice em torno dos seis e sete anos, vai muito além de tornar as crianças capazes de decodificar símbolos e utilizá-los em em situações práticas. Do ponto de vista da Educação Integral, alfabetizar não é só transmitir as regras de uma língua, mas sim ensinar à criança todas as outras linguagens que ela vai precisar saber manejar ao longo de sua vida, como a alfabetização emocional, alfabetização corporal e até tecnológica, chamada de “letramento computacional”, que são as habilidades necessárias para que um indivíduo possa dar ordens e comandos a uma máquina.
Segundo explicaram os especialistas e pesquisadores do encontro, as habilidades socioemocionais são imprescindíveis para situar o indivíduo neste novo universo de demandas, e elas vêm das mais variadas áreas da ciência: Psicologia, Neurociência, Psicomotricidade, entre outras.
Como explicou o economista Ricardo Paes de Barros, que ministrou a palestra “Alfabetização em múltiplas linguagens”, a educação integral é um direito básico e elementar, e está nas bases das legislações de países do mundo inteiro e da própria Constituição Federal Brasileira.
“A educação integral é um meio indispensável para realizar todos os outros direitos humanos. Não existe uma educação não integral que seja direito humano, pois a educação integral é um direito humano em si”, defende o professor, que possui pós-doutorado em Estatístico pelo Centro de Pesquisa em Economia da Universidade de Chicago e pelo Centro de Crescimento Econômico da Universidade de Yale.
Durante sua fala, ele trouxe dados inéditos sobre o impacto da alfabetização – tardia ou na idade esperada – na vida adulta, mostrando exemplos de comunidades afluentes e vulneráveis, e as diferenças de rumo em cada uma delas.
“Não alfabetizar uma criança no tempo regular afeta a transmissão intergeracional da pobreza e das desigualdades”, explicou
A taxa de aprovação nos anos iniciais do Ensino Fundamental, segundo a defasagem idade-série, de acordo com uma pesquisa realizada em 2015, é de apenas 32 pontos percentuais, e aumenta gradativamente quanto menor for o tempo de defasagem, chegando a 95% para aqueles que se alfabetizaram na idade correta.
Segundo Barros, o acesso à alfabetização regular também impacta diretamente o direito humano à saúde. Segundo a pesquisa realizada por ele em conjunto com o Insper e o Instituto Ayrton Senna, que considerou mais de 200 indicadores, aos 35 anos, apenas 56% dos não alfabetizados avaliam seu estado de saúde como bom, índice que chega a 67% entre os alfabetizados. Da mesma forma, a probabilidade de ter uma ocupação formal no mercado de trabalho é de apenas 45% entre os não alfabetizados, e 71% para os alfabetizados, sendo que as pessoas do primeiro grupo ganham menos da metade do salário dos profissionais do segundo. O grau de alfabetização incide também de forma considerável em relação ao número de filhos, qualidade de vida e muitos outros fatores.
Os caminhos possíveis
Formada em sua maioria por professores e educadores, a plateia do evento debateu junto aos convidados as dificuldades da vida prática dentro da sala de aula, e o desafio de implantar os conceitos da educação integral em um ambiente quase sempre com poucos recursos e pouco valorizado.
Alguns aspectos apareceram na fala de todos os participantes, como a necessidade de o professor ser um observador atento da criança, a atenção individualizada, as interações sociais calorosas e bilaterais entre aluno e professor e a importância de intercalar atividades propostas pelo professor com outras sugeridas pela criança. Além disso, foi destacado a importância de formar turmas menores com professores que recebam treinamento prático.
Daniel, professor da USP – Universidade de São Paulo – e vice-coordenador do Núcleo de Apoio à Pesquisa em Neurodesenvolvimento e Saúde Mental, pesquisa a relação entre o desenvolvimento econômico e o desenvolvimento socioemocional do indivíduo. Ele destacou a disposição ao acolhimento, e a continuidade do vínculo afetivo ao longo dos anos como peças-chave para solidificar a relação entre o professor e o aluno. O binômio cuidar e educar é essencial para o desenvolvimento pleno da criança.
Primeira infância: onde tudo começa – Cada vez mais, os pesquisadores, como James Heckman, têm defendido sistematicamente que quanto antes as famílias e a sociedade investirem no desenvolvimento de seus filhos, maiores são os retornos individuais e sociais. A primeira infância é uma janela de oportunidade de desenvolvimento de diversas competências, que nessa fase estão particularmente maleáveis e em transformação; para diversas competências, as mudanças ocorridas nesta fase são as mais duradouras, especialmente as socioemocionais. O desafio atual é justamente o de discutir a prontidão ao aprendizado sem com isso isolar a creche. (Fonte: Instituto Aryton Senna)
“A intencionalidade de educação infantil não é transmitir conhecimento, mas conduzir o desenvolvimento da criança, e isso tem que ser processual. O desenvolvimento de uma competência no início da vida influencia diretamente as habilidades da vida futura”, afirmou o pesquisador, que explica que, ao escolher uma creche ou escola para o filho, os pais devem levar em consideração que o impacto desse ambiente tende a ser muito maior a longo prazo sobre as habilidades socioemocionais da criança do que sobre suas competências cognitivas.
Ou seja, crianças que crescem em espaços seguros, acolhedores e afetivos têm maior chance de se tornarem adultos resilientes, focados, persistentes e emocionalmente preparados, dentre outras características desse campo de habilidades.
Para Inês Kisil, gestora de Políticas de Aprendizagem do Instituto Ayrton Senna, quando o assunto é educação integral, já se sabe muito sobre os déficits do sistema educacional brasileiro, e por isso é preciso focar no futuro.
“Existe um coletivo de responsabilidade sobre a criança, que é ao mesmo tempo da comunidade intra-escolar e extra-escolar”
“Temos que romper com a mentalidade do individualismo na Educação. Alfabetizar vai muito além de ensinar a ler e escrever, vai no sentido de mudar a cultura, e isso não é fácil”, concluiu Inês.
“Valorizar e desenvolver essas habilidades não significa rejeitar a relevância dos conteúdos curriculares tradicionais, mas oferecer mais um canal de apoio para que todos os envolvidos no processo educativo possam planejar, executar e avaliar ações mais equitativas e eficientes em todos os aspectos envolvidos no ensino”. (Fonte: Instituto Ayrton Senna)