Entender a complexidade química do espaço sideral ou imaginar a chegada da família real ao Brasil. Aprender palavras estrangeiras, mergulhar em uma outra cultura, executar os cálculos matemáticos indispensáveis. Os caminhos do acesso de crianças e adolescentes à educação no Brasil nem sempre atravessam os corredores da escola, mas passam, necessariamente, por garantias constitucionais, ações governamentais e pela dedicação de uma equipe profissional. E se depender do hospital pediátrico Pequeno Príncipe, em Curitiba (PR), pegar o atalho da fantasia e da imaginação será sempre a rota mais segura.
Seja nas salas de estudo, nos quartos, nos ambulatórios, nas enfermarias ou na UTI (unidade de terapia intensiva): o atendimento escolar ali é uma mistura de educação formal com trabalho cultural, que envolve oficinas de música, teatro, artes plásticas e festas. “Nosso interesse é despertar a curiosidade e o encantamento, trazendo o saber de cada disciplina, mas de uma maneira integrada”, afirma o psicólogo Cláudio Teixeira, coordenador do Setor de Educação e Cultura do hospital.
Em geral, segundo o coordenador, a dinâmica não difere muito do que é nas escolas, exceto por algumas limitações pontuais, como no tratamento de medula óssea, em que pacientes precisam de um cuidado maior. Nestas situações, os livros e materiais didáticos não podem ser usados, passam por higienização especial e computadores são adaptados com cobertura especial.
Por atuar em saúde de média e alta complexidade, o hospital acaba sendo o local onde centenas de pacientes recebem atendimento escolar de longo prazo, como casos de crianças que estudaram dos quatro aos 17 anos durante tratamentos. Ou seja, há crianças que só conseguem estudar, porque este tipo de trabalho existe.
Educação viva
O Hospital Pequeno Príncipe possui um histórico antigo no atendimento escolar: as aulas começaram em 1988, ano em que foram realizados os primeiros convênios com a prefeitura. Em 2002, o hospital criou um setor de Educação e Cultura para expandir o aprendizado e integrar vivências culturais e artísticas à educação formal. Hoje, o setor realiza uma dúzia de projetos, que ligados às abordagens de ensino utilizadas, compõem o que o psicólogo Cláudio Teixeira chama de “educação viva”.
“Nosso interesse é despertar a curiosidade e o encantamento, trazendo o saber de cada disciplina, mas de uma maneira integrada”
“Uma das abordagens que utilizamos são as ‘cirandas do saber’ ou a ‘volta ao mundo’, em que utilizamos trechos de vídeos, áudios, objetos ou falas curtas como elementos geradores para tratar de um tema. Assim vamos trazendo os tópicos disciplinares, junto com a presença dos pais que participam ativamente dos estudos e das pesquisas”, comenta.
Sobre as vivências culturais, o psicólogo explica que elas não são “apresentações para crianças”, o que muita gente pensa por se tratar de atividades em hospitais, mas imersões, que permitem uma aprendizagem também a partir da experiência concreta. Um exemplo são as festas típicas que envolvem danças como as congadas ou bumba meu boi, momentos em que crianças e pais se envolvem na preparação, compõem músicas, cantam, dançam e montam bonecos.
Atualmente, o Hospital Pequeno Príncipe conta com uma equipe pedagógica de atendimento escolar pluridisciplinar: são 20 educadores, sendo um terço dos profissionais contratados pelo município, um terço pelo estado e outro restante pelo próprio hospital. Em 2017, 3197 pacientes receberam aproximadamente 6400 atendimentos. “Existe essa imagem de que quem educa nos hospitais precisa ser diferente, mas só precisamos de bons e boas professoras. Temos profissionais das áreas de línguas, exatas, psicologia, jornalismo, entre outras. A característica do grupo é a curiosidade, o gosto por trabalhar em equipe e a busca por compreender o mundo de forma holística e não ‘dentro da gaveta’”, afirma o coordenador de Educação e Cultura do hospital.
Formação de profissionais em educação hospitalar
O atendimento escolar em hospitais, centros de reabilitação ou instituições de saúde, em geral, exige as mesmas competências pedagógicas necessárias para se trabalhar com crianças e adolescentes em escolas. Apesar disso, é preciso compreender condições clínicas e lidar com limitações especiais, como dificuldades de locomoção, imobilização parcial, horários de administração de medicamentos, reações colaterais e, à vezes, indisposição.
Em 2002, o Ministério da Educação publicou uma cartilha com estratégias e orientações para o atendimento pedagógico em classes hospitalares, destacando aspectos físicos do espaço, instalações e equipamentos, características do ambiente hospitalar e a necessidade de integração dos educadores com a equipe de saúde. Embora existam algumas especializações e cursos de extensão voltadas à “pedagogia hospitalar”, não há, na maioria das universidades, disciplinas específicas para classes hospitalares. Nesse sentido, alguns profissionais acreditam que exista uma lacuna nessa formação.
“Lidamos com crianças doentes ou com risco de morte e não temos, a princípio, uma formação tanto inicial como continuada para isso. Um dos maiores desafios na formação de professores para as classes hospitalares é a necessidade de um preparo pedagógico mais concreto”, defende a pedagoga e ex professora da classe hospitalar do Hospital Geral de Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro, Tyara Oliveira.
A professora, que concluiu sua pós-graduação em Pedagogia Hospitalar e que atualmente estuda o mesmo tema no mestrado em Educação na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), sugere que os profissionais que trabalham nessa área desenvolvam algumas competências: “flexibilidade, abertura para mudanças relacionadas ao humor dos alunos, boa escuta pedagógica, criatividade, equilíbrio profissional e capacidade para trabalhar em equipe”. Acima de tudo, segundo ela, é preciso sempre priorizar a criança e não a doença, destacando sempre as potencialidades dos alunos e das alunas.
Se por um lado existe a necessidade de classes hospitalares funcionarem como uma espécie de extensão formal das escolas, com registros de atividades, avaliações periódicas e cumprimento de tópicos curriculares essenciais, possibilitando à equipe pedagógica inovar em suas práticas de aprendizagem, por outro, o ambiente hospitalar também irá exigir o preparo para lidar com limitações físicas e sensoriais, acidentes e, em muitos casos, com perdas e elaboração do luto, trabalho que necessita de um suporte de uma equipe de saúde que lida diariamente com todas essas situações.
Tyara Oliveira relembra, por exemplo, como foi importante o suporte da Secretaria de Educação no Hospital Nova Iguaçu para o trabalho dos professores. “As reuniões com a diretoria do hospital e com a chefia de enfermagem também sempre foram muito importantes para as nossas formações continuadas”, conta.
Por isso a importância de integração entre o sistema de saúde e de educação, pensando sempre em políticas para a infância que possibilitem um diálogo entre as instituições que atendem essa população. E todo esse suporte pode ser realizado de um jeito muito leve e criativo. Afinal, estudar é um direito de todos, seja nas escolas, em casa ou nos hospitais. E quanto mais encantador for esse caminho, maior será o entusiasmo dos profissionais com seu trabalho de despertar a curiosidade de aprender nas crianças. Pode ser isso o que faz o psicólogo e coordenador de Educação e Cultura do Hospital Pequeno Príncipe ter tanta confiança no trabalho da equipe: “É a escola que a gente sempre sonhou”, garante.
Ter aula em um hospital é um direito do aluno garantido por lei. O artigo 214 da Constituição Federal afirma que as ações do Poder Público devem conduzir à universalização do atendimento escolar. Além disso, a “classe hospitalar” está inserida dentro de uma perspectiva inclusiva na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB 9.394/96) como educação especial. Estão incluídos alunos com necessidades educacionais especiais, deficientes auditivos, físicos, com deficiências motoras e múltiplas e outras síndromes, assim como portadores de dificuldades cognitivas, psicomotoras e de comportamento. Também os alunos impossibilitados de frequentar aulas em razão de tratamento de saúde que implique internação hospitalar ou atendimento ambulatorial.