Para algumas mulheres, a única lembrança da “partolândia” é o calor daquelas mãos. Como se existissem para fazer mágica, elas massageiam corpos em contração, conduzem ao relaxamento e tecem ambientes mais acolhedores para um parto humanizado. Em vez de apontar o dedo, estendem as mãos para encorajar gestantes em suas decisões. Elas são doulas – do grego “mulheres que servem”- e, ao longo da história, figuras que acompanharam o nascimento ao lado de parteiras, também amparando famílias e garantindo cuidados domésticos no período de adaptação ao novo cenário.
“Hoje, nosso papel é dar suporte informativo, físico e emocional”, afirma Patrícia Teixeira, presidente da Associação de Doulas de Curitiba e Região Metropolitana (Adouc). São como “comadres” profissionais, presentes para escutar ativamente e oferecer uma segunda opinião, relação que pode iniciar mesmo antes da gravidez. Atuando com educação perinatal, elas começam a prestar serviço no momento em que são convocadas pelas famílias e se tornam um ponto de apoio às mulheres durante a gestação, parto e puerpério.
Autonomia das parturientes
Laura Daltro, integrante do coletivo Doulas Pretas, de Salvador (BA), se sente responsável por esclarecer às famílias sobre violência obstétrica (tratamento desumanizado, medicação abusiva ou patologização dos processos naturais, reduzindo a autonomia da paciente e a capacidade de tomar suas próprias decisões). Com informação e construção de vínculos, ela ajuda outras mulheres a optarem por caminhos mais saudáveis e menos traumáticos para o nascimento.
“Usamos métodos não farmacológicos, como massagens, aromaterapia, rebozo e técnicas que foram desenvolvidas para dilatação e alívio da dor”, explica.
Como sugere o obstetra e especialista em medicina fetal e gestação de alto risco, Leonardo Valladão, é importante que as doulas tenham conhecimento sobre obstetrícia. Embora caiba à equipe médica alertar sobre riscos e benefícios de cada procedimento, indicando o momento de entrar em ação, é muito comum que sejam as doulas as mediadoras dessa comunicação com as parturientes. Com base nesse suporte, cada vez mais mulheres buscam autonomia visando o próprio bem-estar na hora do parto.
Para reforçar suas decisões, as gestantes costumam elaborar um plano de parto durante o pré-natal, com diretrizes para o momento do nascimento. No documento, as mães registram, por exemplo, a posição em que desejam parir e quem serão seus acompanhantes, orientações que devem ser seguidas se o parto transcorrer sem complicações. Isso porque, segundo a obstetra e especialista em gestação de alto risco Marina Levy, a presença de doulas ainda pode ser rejeitada em hospitais (se o espaço for reduzido) e em equipes médicas mais intervencionistas. “Se o médico for mais ativo e a doula preferir de forma mais natural, pode acabar havendo uma batalha de forças na hora do parto. Eles acham que as doulas podem interferir em suas condutas”, explica.
Trabalho em equipe
“Não é simplesmente uma opinião, os dados científicos são robustos em relação aos benefícios das doulas em equipes de parto”, garante Leonardo. Conforme relata o obstetra, o incentivo dessas profissionais auxilia no aumento da taxa de parto vaginal espontâneo, diminuindo a necessidade de medicamentos, analgesia e instrumentalização. “As notas do Apgar (índice de avaliação das condições de vitalidade do recém-nascido à vida extra-uterina) são melhores quando há doulas presentes”, observa.
A pesquisa “Continuous support for women during childbirth” (“Suporte contínuo para mulheres durante o parto”, em tradução livre), publicada em 2017, revisou 26 estudos avaliando 15.858 mulheres em trabalho de parto, em 17 países do mundo, incluindo o Brasil, e apontou que o suporte contínuo prestado por doulas foi mais efetivo do que por familiares e outros profissionais. Ao mesmo tempo, para afirmar qualquer benefício, é preciso considerar a diversidade de atendimento à saúde nos países e diferentes condições de nascimento que possam interferir nos resultados.
“Assustados com o desconforto e o momento de contrações, os acompanhantes podem levar a parturiente ao desespero, causando também ansiedade na equipe médica, que pode intervir quando não seria necessário”, diz Leonardo. Nesse tipo de situação, as doulas também estão preparadas para oferecer apoio emocional e conforto. Como defende Patrícia, elas prestam assistência à equipe e não substituem ou contestam funções de obstetras, parteiras e enfermeiras obstetrizes, assim como não substituem a presença de familiares.
Benefícios da presença de doulas
- Trabalhos de partos mais curtos
- Experiência mais positiva e satisfatória de parto
- Partos menos dolorosos
- Menor risco de parto com fórceps ou vácuo
- Menos cesáreas desnecessárias
- Bebês com menos dificuldades respiratórias no nascimento
- Menor risco de depressão pós parto
- Início mais precoce da amamentação
(Fonte: Continuous support for women during childbirth – “Suporte contínuo a mulheres durante o parto”, em tradução livre)
Acesso às doulas
“Doular não é fácil, nem barato, mas a acessibilidade ainda é uma escolha profissional”, afirma a doula Laura Daltro. O custo varia entre as regiões do país: na cidade de São Paulo, esse acompanhamento pode exigir R$ 5 mil, enquanto, em Salvador, o mesmo valor chega a cobrir uma equipe inteira de parto. Já em Curitiba, a média de preço da doulagem está entre R$ 1,2 e 2 mil.
O Projeto de Lei 8363.2017, que dispõe sobre o exercício profissional das doulas ainda não foi aprovado na Câmara de Deputados. Enquanto isso, nos últimos anos, estados e municípios brasileiros vêm tentando implementar o serviço nas maternidades. Como não é ofertado gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS) – e a cobrança terceirizada não é permitida – muitas delas se tornam voluntárias em hospitais e unidades de saúde para tornar os benefícios da doulagem mais acessíveis.
Formação
A formação de doulas acontece em cursos livres, com carga horária variada, cabendo às instituições de classe oficializadas – associações, federação, cooperativas, sindicatos e afins – organizar os critérios da certificação. Para que sejam profissionalizantes, segundo o Ministério da Educação, os cursos devem alcançar 180 horas em todo o Brasil.
Outros fatores interferem na democratização do serviço, entre eles o racismo. As mulheres negras são as que mais sofrem com violência obstétrica no Brasil, conforme indica um estudo realizado por pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz. Para Laura, é importante que a formação de doulas considere esse cenário.
“Precisamos que as mulheres pretas se vejam nas profissionais que as auxiliam, ou seja, precisamos formar doulas pretas para lutar contra a violência obstétrica”
Isso exige, segundo ela, repensar os valores da prestação de serviço a mulheres negras e da capacitação de doulas, considerando condições socioeconômicas e oferecendo oportunidades de permanência nos cursos.
Humanização do parto
Serena nasceu na cidade de Florianópolis (SC), em setembro de 2020, pelas mãos da parteira mexicana Naoli Vinaver, com auxílio da doula e também parteira de tradição guarani, Marcela Flueti. Para a mãe e designer Bruna Fronza de Camargo, o parto resgata um poder que atravessa gerações. Emocionada, ela se lembra do olhar penetrante da doula e da sensibilidade nas palavras: “Você consegue, está indo muito bem!”, dizia ela.
“Sempre me imaginei parindo da maneira mais simples possível”, diz Bruna. E para isso, além do acompanhamento alopático, ela contou com o carinho de profissionais alinhadas a suas ideias e princípios, desde o início da gravidez.
Bruna se sentiu segura e amparada, afinal, partos domiciliares não costumam ser uma indicação médica, mas uma decisão da própria gestante, a partir da avaliação de riscos e benefícios, em parceria com a família e profissionais especializados na assistência humanizada. Apesar disso, não é uma modalidade oferecida pelo SUS ou paga pelos seguros (embora haja reembolso em alguns casos), tornando-se inacessível para grande parte das mães.
“A gestação é um momento importante e grandioso demais para não ter um apoio que te escute de verdade” – Bruna Fronza de Camargo
Há sete anos acompanhando partos hospitalares, a doula Patrícia Teixeira também se emociona ao recordar cada chegada ao mundo. “A mulher pode ficar fragilizada, pois é um momento delicado. Não é só expulsar o bebê, mas uma espécie de rito de passagem”, descreve.
É por isso que “humanizar” diz mais sobre o respeito à natureza e ao protagonismo de cada mulher e seu bebê, do que sobre o local do parto. Entre respirações conduzidas, alongamentos e silêncio respeitoso, não há dúvidas: doular é uma arte ancestral de apoio.
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O Brasil é o segundo país do mundo em número de cesarianas, perdendo apenas para a República Dominicana. Enquanto a Organização Mundial da Saúde (OMS) estabelece em 10-15% a proporção recomendada, aqui esse percentual chega a 43% nos serviços públicos e 88% no setor privado, segundo o Inquérito Nacional sobre Parto e Nascimento. A presença das doulas acaba sendo um contrapeso a esta realidade pois, em conjunto com equipes especializadas, elas incentivam partos vaginais, quando possível.