Um grupo de dança parece a solução perfeita para que a garota Amy (Fathia Youssouf) possa enfrentar o ambiente conservador de sua casa e os contornos dogmáticos de sua religião islâmica ao mesmo tempo em que vislumbra a possibilidade de ser aceita por seus pares. Tudo isso enquanto atravessa a fase da puberdade, em que começa a entender seu feminino, e é fisgada pelas promessas de validação que as redes sociais representam entre os jovens da sua idade. Essa é a história central do recém-lançado filme franco-senegalês “Mignonnes” (traduzido para “Cuties”, em inglês, e para “Lindinhas”, em português), disponível pela plataforma Netflix.
Embora tenha recebido o prêmio de melhor direção no Festival de Sundance de 2020, o filme sobre as diferenças culturais e as descobertas do começo da adolescência inaugurou uma série de polêmicas.
Os protestos alegam hipersexualização infantil, com base principalmente no cartaz promocional do filme que mostrava quatro meninas em poses sexualizadas durante um concurso de dança. A sinopse também foi alvo de críticas por apontar o primeiro contato da protagonista “com sua feminilidade”. A diretora estreante Maïmouna Doucouré revelou ter recebido inclusive ameaças de morte. “As pessoas que começaram esta controvérsia não viram o filme ainda”, explicou em entrevista. “Estou ansiosa para ver as reações quando perceberem que estamos do mesmo lado na luta contra a hipersexualização de crianças”. Após as críticas, a Netflix mudou a imagem do cartaz de divulgação e também a sinopse de “Cutie”s.
A Netflix também pediu que o público assista ao filme antes de julgá-lo. “Cuties é um comentário social contra a sexualização de crianças”, explicou o porta-voz. “É uma história poderosa sobre a pressão que jovens garotas sofrem das mídias sociais e da sociedade, geralmente, em seu crescimento”.
Há limites para a liberdade de expressão?
O filme “Cuties” é “uma crítica, uma denúncia e uma representação do que nós como sociedade temos gerado e deixado acontecer”, opina Thiago Barbosa, especialista que alia a psicologia a análises sobre cinema. Por ser uma narrativa que ilustra a nossa realidade social, ele considera que a censura dessa obra mostra a dificuldade em lidar com questões como a objetificação da mulher mesmo em idade precoce, “um fenômeno histórico e cultural muito enraizado que acaba sendo ensinado às crianças, seja nas relações domésticas ou através das mídias, de forma escancarada ou sutil”, pontua. “Elas acabam reproduzindo isso sem entender o que realmente significa”.
“A hipersexualização retratada no filme é um dos extremos a que a mulher é condicionada desde a infância”
Viviana Santiago, colunista do Lunetas e gerente de gênero e incidência política da Plan International Brasil, sugere que “interdição e ataques não são o caminho, mas é preciso entender o que está por trás dessas revoltas”. Embora a educadora reconheça que a intenção da produção tenha sido denunciar a hipersexualização de meninas, na sua opinião, “o filme violenta as atrizes por submetê-las a um perverso processo de objetificação, exposição e, portanto, violência contra crianças e adolescentes”.
“Não se pode violar meninas para denunciar a violação de meninas”
“Será que essas atrizes mirins estavam conscientes do que encenaram? Será que foram devidamente preparadas para esse tipo de trabalho?”, questiona Thiago. Viviana adiciona à lista a questão do risco do trabalho infantil artístico. “Se criticamos essa violência, por que submetemos as meninas à câmera que as explora e violenta quando constrói um passeio erotizado por seus corpos?”
Segundo a diretora de “Cuties”, as filmagens foram acompanhadas por uma espécie de conselheiro tutelar e o longa teve autorização por parte de todas as instâncias do governo da França. Mas, a cientista política especialista em infância e juventude Tânia Dornellas, que atua como assessora do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), comenta que “sem conhecer os bastidores das filmagens de ‘Cuties’”, não tem como afirmar “se houve ou não preocupação no sentido de expô-las ao trabalho”. No Brasil, continua ela, “há relatos de situações de trabalho infantil artístico que evidenciam que nos sets de filmagens predomina a não proteção e a busca pela estética perfeita da cena e dos personagens, o cumprimento de prazos, independente das condições de exaustão vivenciadas”.
O trabalho infantil artístico precisa de legislação e acompanhamento especializado, pois, segundo a cientista política, pode apresentar “impactos no desenvolvimento físico, psicológico e social de crianças e adolescentes, que são mais propensos a terem dificuldades em separar o que é real do que é ficção e dissociar o personagem de sua própria subjetividade, podendo gerar falsas expectativas relacionadas à exposição social e problemas emocionais de curto, médio e longo prazos”.
“As autorizações judiciais para o trabalho infantil artístico são excepcionalidades. Que mecanismos os países adotam para garantir a proteção integral de crianças e adolescentes?”
Trabalho artístico infantil no Brasil
O Brasil é signatário da Convenção 138 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), incorporada ao ordenamento jurídico nacional pelo Decreto nº 4.134/2002. Segundo o III Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Adolescente Trabalhador (2019 – 2022), o trabalho infantil “refere-se às atividades econômicas e/ou atividades de sobrevivência, com ou sem finalidade de lucro, remuneradas ou não, realizadas por crianças ou adolescentes em idade inferior a 16 anos, ressalvada a condição de aprendiz a partir dos 14 anos”. Adolescentes entre 16 e 17 anos podem trabalhar formalmente, com exceção daquelas atividades consideradas formas de violência à infância, como trabalho doméstico e trabalho na agricultura. Esses casos somente são permitidos a partir de 18 anos.
No Brasil, não existe uma legislação específica sobre o trabalho infantil artístico (novelas, peças de teatro, filmes, entretenimento em geral). Esse trabalho se dá por autorizações judiciais, desde que existam garantias mínimas e explícitas referentes à jornada de trabalho, definição de horários das atividades (ensaios, filmagens), matrícula e frequência escolar, remuneração, avaliação das condições do ambiente de trabalho, previsão de caderneta de poupança, entre outros aspectos.
Por serem seres em formação, o artigo 227 da Constituição Federal de 1988 deixa claro que “é dever da família, da sociedade e do Estado […] colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”
Como então debater esses temas?
Além da polarização entre a busca pela preservação e proteção da infância e uma adultização da criança a ponto de sexualizá-la, o psicólogo Thiago ainda reconhece na trama oportunidades para se discutir “a falta de investimento em educação sexual como forma de autoproteção, a vulnerabilidade provocada pelo mau uso das redes sociais, a influência das amizades, a autoimagem em meio a estereótipos, a dificuldade que adultos têm de ensinar os pequenos por conta de pais que também não tinham os recursos para lidar com esses assuntos, os efeitos de uma cultura machista e do autoritarismo sobre a criança, bem como a importância da orientação acolhedora e do diálogo parental”.
“Mais do que estipular limites, é preciso explicar à criança o porquê de eles existirem, sem ser inferiorizada por sua condição natural de criança, ou seja, de ainda não ter todos os recursos e informações”, defende. “Duas cenas de “Cuties” são amostras do quanto a rotina daquelas crianças é marcada pela ausência dos pais ou de alguém que as conduza pelo mundo: a que uma das crianças revela dançar em busca da aprovação que não tem de seus pais e a da personagem que chora, envergonhada, após brincar com um preservativo masculino”, comenta. “Cabe a nós, adultos, o ofício de ajudá-las a cultivar o senso crítico para lidar com situações que envolvem sua integridade física e moral, especialmente em se tratando do uso da internet”.
“Nós somos atravessados pelos acontecimentos ao redor. As crianças não estão ilesas a isso”
Para Viviana, o processo de validação e busca por reconhecimento de um grupo é característico da adolescência. “Mas devemos questionar os padrões de socialização impostos a essas meninas, que envolvem a hipersexualização, a performance e a objetificação dos corpos. Acredito que isso foi pouquíssimo problematizado no filme”, conclui.
Thiago ainda comenta a cultura do cancelamento como produto da carência de empatia, em que o divergente precisa ser eliminado. “A empatia não é um abandono de nossos princípios nem gera anulação de identidade, é muito mais do que se compadecer e respeitar: envolve racionalizar a situação e buscar um ponto de união. Nem todos têm a disposição para fazer esse movimento”, pondera. “Ainda que choque, esse tipo de produção como o filme “Cuties” pode ser entendida como uma tentativa de diálogo, sem que signifique que os envolvidos compactuem com o cenário retratado”, lembra ele. “Para consumir esse conteúdo é preciso se despir de algumas crenças e buscar entendê-lo em sua complexidade”.
A diretora Doucouré disse, em entrevista, que “o filme tenta mostrar que nossas crianças deveriam ter o tempo necessário para serem crianças, e nós, adultos, deveríamos proteger sua inocência e mantê-las inocentes o máximo possível”. O filme traria então um novo olhar sobre a sexualização precoce como sintoma de um desarranjo social, a partir do posicionamento contrário à exposição infantil.
A jornada de Amy em ‘Cuties’
Amy é uma criança de origem senegalesa que, aos 11 anos, se muda para a França porque o pai está prestes a se casar de novo e a segunda esposa virá morar com a família. Essa situação de uma forte latência emocional é vivenciada ao mesmo tempo em que acontecem as primeiras descobertas de sua adolescência relacionadas também ao desenvolvimento do corpo.
O caráter hiperssexualizado de seus atos funciona como contraponto crítico ao meio social e cultural em que ela se encontra, do autoritarismo da família conservadora ao descontentamento com sua realidade, origens e costumes – Amy escuta das mulheres mais velhas que a água “lava os pecados” e que deve se submeter às vontades do marido, por exemplo.
A dança foi o escape que ela precisava para lidar com a tensão dentro de casa ao mesmo tempo em que traz a possibilidade de ser aceita pelo grupo de garotas de sua idade. O acesso ao ambiente virtual lhe apresenta a um mundo em que a hipersexualização é normalizada pela cultura de massa, e as redes sociais prometem uma aprovação instantânea caso as fotos “certas” sejam compartilhadas. Contudo, “como as conexões são convertidas muito fácil em julgamento, temos aí um terreno fértil para o caos emocional”, comenta o psicólogo Thiago.
Após um longo processo em que é dominada pelas pulsões do que julga ser o papel social destinado a ela, intercalando violências e danças que refletem uma precocidade indevida, Amy enfim percebe que está agindo contra seus valores pessoais.
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