A bandeira de “cancelar o cancelamento”, levantada por participantes da nova edição do Big Brother Brasil, logo cedeu espaço para narrativas de cancelados e canceladores que atravessaram os muros da “casa mais vigiada do país” e foram se acomodar nos lares de muitos brasileiros.
Com essa visita assídua, que recebemos em nossa sala e às vezes a convidamos para debates à mesa, precisamos considerar o efeito do papel da comunicação e do mercado de influência digital também nas infâncias, com reflexos em pelo menos 20 milhões de crianças e adolescentes de nove a 17 anos que já frequentam esses ambientes, com perfis ativos em redes sociais e usuários de internet, segundo a pesquisa TIC Kids Online Brasil, de 2018.
A “cultura do cancelamento” é um fenômeno recente “criado” justamente pelas redes sociais, “como uma forma de punição ou não aceitação e tolerância a um conteúdo considerado inadequado, em que uma pessoa responsável por determinada atitude ou comentário passa a ser ignorada, perdendo seguidores ou sendo excluída antes mesmo de poder se retratar e reparar os erros”, comenta Samara Miranda, psicóloga da Clínica Preta e educadora social.
Para ela, o cancelamento se diferencia do bullying, uma forma de agressão explícita e repetitiva capaz de gerar humilhação, ameaça e intimidação a alguém, mais pelo espaço de ocorrência: enquanto o cancelamento acontece em ambientes virtuais, o bullying está presente na sala de aula ou no parquinho da praça, por exemplo. “Ambos são construções sociais que determinam comportamentos, ações e questões, sejam elas raciais, sociais e morais, que vão desencadear sentimentos negativos, exclusivos e preconceituosos em relação ao outro”, define.
Já o psicólogo Thiago Barbosa, responsável pelo projeto Terapia Fora da Caixa, reforça a cultura do cancelamento como “produto da carência de empatia, em que o divergente precisa ser eliminado”. Para ele, “a empatia não é um abandono de nossos princípios nem gera anulação de identidade, é muito mais do que se compadecer e respeitar: envolve racionalizar a situação e buscar um ponto de união. Nem todos têm a disposição para fazer esse movimento”, diz.
Infância sujeita à “cultura do cancelamento”
Para entender como o cancelamento pode impactar e se manifestar durante a infância, a psicóloga Samara recupera alguns marcos do processo de desenvolvimento e o quanto ele é determinante para a construção da identidade e da autoimagem da criança.
“Ao nascer, o bebê possui apenas fragmentos de consciência misturados à identidade materna; a consciência do próprio “eu” começa a se desenvolver somente entre os três e os cinco anos de vida”, comenta. “Portanto, relacionamentos saudáveis com os pais são cruciais para a manifestação de uma personalidade com características de autoconfiança e capacidade de realização. A falta desse amor pode acarretar um sentimento de vazio, busca de satisfação externa e baixa autoestima, especialmente a partir dos sete anos, quando as crianças passam a ter algum contato com o mundo virtual”, alerta.
Nesta fase de desenvolvimento de personalidade e aprendizado de conceitos de moralidade, ao acessar informações e grupos distintos via internet, as crianças começam a identificar preferências e fazer escolhas de “quem seguir” segundo “características físicas, afinidades musicais, times de futebol, entre outros. Como ainda não têm valores muito bem definidos, é importante acompanhar e conhecer que tipo de conteúdo está sendo consumido e quais referências elas elegem para si”, aponta Samara.
Sendo assim, a “cultura de cancelamento” entre as crianças “pode se manifestar por meio de preferências, atitudes, formas de pensamento ou questões semelhantes por identificação ao se aliarem a outras crianças com as quais se identificam ou até mesmo como busca por aceitação, fazendo escolhas que podem levar ao comportamento de ignorar ou excluir um colega logo após uma polêmica ou uma briga, sem dar espaço para o diálogo e perdendo a oportunidade de aprender”.
Samara lembra que, nesse período de vida, qualquer ataque sofrido será geralmente absorvido de forma cruel e impactante, podendo gerar traumas psicológicos. “Portanto, é preciso se atentar ao comportamento da criança, estar aberto e disposto a ouvi-la para identificar quaisquer mudanças.”
“O contato próximo e seguro permite que a criança estabeleça um desenvolvimento saudável da consciência, de forma que consiga gerar vínculos com o próximo, aceitar suas questões e elaborar as diferenças”
“Quando a violência é naturalizada na infância”, escreve Thiago Queiroz, criador do canal Paizinho, vírgula!, “essas dores e resignações deixam marcas para a vida”. Para ele, o diálogo com os filhos é um meio poderoso para tentar conter o avanço do cancelamento e evitar uma nova geração de cancelados/canceladores, em que o ódio e a perseguição prevalecem entre os recursos para se enfrentar situações adversas, “porque vai ser também com diálogo que eles tentarão resolver seus conflitos na vida adulta”.
Sendo a falta de diálogo tão nociva quanto o julgamento obstinado dos discursos que queremos “cancelar”, Thiago então propõe resgatar uma “criação com afeto”, a partir de uma “abordagem mais empática e respeitosa da infância” ao invés de uma cultura de violência em que as crianças são “ignoradas, castigadas, silenciadas e violentadas (seja física ou psicologicamente) por seus pais”.
“Nenhuma sociedade será pacífica enquanto suas crianças continuarem a ser violentadas”
Essa influência das mídias também aparece entre os resultados da pesquisa “Primeiríssima infância – interações: comportamentos de pais e cuidadores de crianças de 0 a 3 anos”, da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal. Segundo a pesquisa, 80% dos adultos mencionaram buscar matérias na internet como importantes fontes de informação e referências em relação ao desenvolvimento infantil e às suas tarefas de cuidado.