A paz é um dos mais legítimos ideais humanos. As crianças têm direito à paz, à ternura, a cuidados dignos e a uma infância sem medo. O medo que crianças podem sentir em suas vidas está longe de ser originado pela falta de aproximação delas às armas de fogo ou a símbolos de violência.
O medo das forças militares, por exemplo, só pode ser enfrentado pela conduta militar por ela mesma, ou seja, quando estas realmente estiverem a serviço da proteção de crianças e suas famílias. As últimas matérias divulgando ações militares com crianças armadas e vestidas de “militares em confronto” foram justificadas por alguns de seus idealizadores como uma tentativa de “retirar” o medo das crianças. No entanto, esta conduta se aproxima de uma verdadeira repetição do terror ante as operações militares às quais assistimos todos os dias.
Ver cenas de crianças portando fuzis semiautomáticos, bombas de gás ou coletes à prova de bala, além de impor terror a elas próprias, trata-se também de impor medo aos adultos que delas cuidam. O som da sirene, as palavras de ordem, os óculos escuros, a farda e as emblemáticas e inconfundíveis armas pesadas são provas concretas de que ações violentas amedrontam as crianças e mostram aos adultos o impacto das forças armadas na relação com os pequenos: transmissão da violência.
Televisionar e propagar tais cenas infla um clima de medo, do terror “dos sem limites”, da violência dos “sem lei”. A quem serve essa promoção do terror? Por que crianças precisam ser instrumento e tema dessas ações? O que vem sendo transmitido desde os últimos quatro anos em emissões televisionadas dessas cenas? O que se pretende transmitir?
Este tipo de terrorismo é alvo do mais puro fascismo, não apenas por ser alvo do terror, mas por se tornar símbolo dele. Hanekel, diretor de “A fita branca” (2009), descreve o fascismo implícito no filme: quando se ergue um absoluto como princípio ou ideal, seja ele religioso ou político, isso torna-se inumano e abre caminho ao terrorismo, pois pune os que não correspondem a esse ideal. A criança objetificada é o signo mais radical de instrumento e de alvo da propaganda nazifascista. Para o diretor, o modelo de autoridade representado no filme marcou profundamente os filhos. Essas crianças (personagens) se tornaram a geração que consolida o partido nazifacista no término da Primeira Guerra Mundial. No filme “O fotógrafo de Mathausen”, um oficial nazista ensina seu filho, ainda menino, a “caçar” inimigos e pretende que ele atire, à sangue-frio e no meio de uma festa, em outro menino judeu, que está servindo os comensais. O pai diz a ele: “Lembre-se de que, por mais parecido que seja a um ser humano, ele não é um ser humano”.
A imagem de crianças com armas ou de adultos mostrando armas às crianças foi um dos símbolos mais marcantes do nazifascismo do pré-guerra e durante a guerra. Essas cenas precisavam ser exibidas amplamente, não apenas para dar exemplo do homem ideal, mas também para minimizar ou banalizar a brutalidade do adulto através da imagem de inocência que a criança pode transmitir ou da porosidade entre brincar e realidade.
Criança como alvo e como tema
A operação de perversão que está incluída em todo fascismo contém o prazer e o gozo do uso do olhar infantil no apagamento violento do outro, da diferença, do humano. O igual deslocamento ocorre em um duplo movimento de denegação: quando, ante uma situação ou cena, vemos que é aquilo e dizemos isso não é aquilo. Nesse caso, diz-se que “ele não é humano, ela não é uma criança”. Entretanto, um adulto com uma criança nos braços e uma arma na mão posa para definir a cena perversa do fascismo: isso não é uma criança e isso não é uma arma. Mas a violência inumana está presente justamente porque, sim, trata-se de uma criança e isso é arma.
No fascismo, a criança é o alvo e a arma é o seu tema, associando a morte à promessa da vida.Unir crianças a armas de fogo e divulgar essas cenas conjuga-se no mais alto refinamento da perversão.
É urgente lutar pela confiança na paz, pelo direito da criança ser criança, pelo cuidado em rede, pela força da educação pública e gratuita para todos, pelo respeito às comunidades vulneráveis, pelo fortalecimento do SUS, pelos cuidados já assegurados através do Artigo 227 da Constituição Federal, do Estatuto da Criança e do Adolescente da Convenção dos Direitos da Criança.
A ética para a vida é o que pode aplacar o medo e fazer com que as crianças possam brincar em paz e com liberdade, que possam viver sem o tormento da falta de proteção dos adultos.
* Claudia Mascarenhas, psicanalista, diretora clínica do Instituto Viva Infância que faz parte da Rede Nacional primeira infância RNPI, Pós doutoranda em Saúde Coletiva UFBA/ISC/FASA.
** Este texto é de exclusiva responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Lunetas.
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