No começo do mês de agosto, Debora Oliveira compartilhou a placa do restaurante Underdog, em São Paulo, que dizia “Aqui seu cão é bem vindo!!! Mas crianças favor amarrá-las ao poste”. A restrição, infelizmente, não é exclusividade do restaurante: entre bares, hotéis, pousadas e outros estabelecimentos, há locais que têm se autodenominado “Child Free”, livre de crianças, em português, uma bandeira surgida para combater a ideia de que homens e mulheres são obrigados a ter filhos. Hoje, no entanto, essa ideia tem se estendido para uma defesa da restrição à presença de crianças em ambientes públicos.
Para Ligia Moreira Sena, doutora em Saúde Coletiva e em Ciências, além de diretora do portal de informação Cientista que Virou Mãe, é importante abordarmos essa bandeira como uma “mentalidade”, não um “movimento”. “Movimento é um grupo de ações organizadas, conduzidas por um grupo coeso de pessoas, em prol de um fim comum. Quando a gente diz que essa mentalidade excludente e desrespeitosa com pessoas (as crianças) é um ‘movimento’, a gente de certa forma valida isso, e isso não pode ser validado. É o mesmo que dizer que a homofobia, por exemplo, e todos os demais comportamentos de ódio, se constituem como movimentos, e não são, são apenas ódio mesmo. No caso do child free é um ódio de criança”.
Para Ligia, a mentalidade tem relação com um egoísmo e uma grande dose de ignorância sobre vários aspectos da vida comum e coletiva em sociedade, além de refletir valores frequentes atualmente, de uma sociedade produtivista, adultista e individualista: “Essas pessoas estão apenas preocupadas com a satisfação de seus gostos pessoais. Porque uma vez que você diz ‘não gostar de crianças’ e, assim, orienta seu comportamento nesse sentido, de impedir o livre fluxo dessas pessoas, você quer apenas a satisfação de suas vontades”.
É importante lembrar, ainda, que a tentativa de impedir a presença de pessoas consideradas diferentes em algum espaço é algo com que convivemos constantemente ao longo da História – pessoas negras, mulheres, pessoas com deficiência e que não seguem a heteronormatividade também sofrem com discurso de ódio e restrição ao seu direito de coexistir. “Child free está nesse mesmo caminho: é um comportamento de ódio e exclusão”, diz Ligia.
Feminismo, direitos da mulher e “child free“
Muitas das mães que questionam a bandeira “child free” se preocupam em deixar claro que apoiam o movimento que luta para que a maternidade não seja uma exigência da sociedade para todas as mulheres. A roteirista e escritora Renata Corrêa, mãe da Liz, de cinco anos, diz: “Como feminista, eu apoio movimentos que questionem a maternidade compulsória. Infelizmente o movimento child free não questiona essa maternidade, ele culpabiliza a mãe. É só mais uma ferramenta conservadora em um mundo já repleto de ódio”.
Quando o assunto é a restrição das crianças a alguns espaços, outra reflexão importante é que, por trás dessa restrição, há também um impedimento à própria mulher. “Vivemos em uma sociedade machista, onde os principais cuidadores das crianças ainda são mulheres. Hoje mesmo na reunião de pais e mestres na escola da minha filha só havia um pai num universo de quase vinte mães. Proibir ou restringir o acesso de crianças em espaços públicos é restringir a circulação das mulheres”, fala Renata.
Intolerância
Mesmo que não haja restrição clara à presença de crianças em alguns espaços, é frequente conviver com alguma intolerância e falta de acolhimento aos pequenos. Foi o que a jornalista Daniela Silva sofreu nesta semana, quando estava em um shopping do Rio de Janeiro para tirar o passaporte da filha Olívia, de menos de um ano. Como a bebê estava irritada e chorosa, Daniela entrou em um café para amamentá-la. Apesar de ser bem atendida pelos funcionários, as pessoas presentes não fizeram nenhum movimento no sentido de dar espaço a ela e olharam feio durante todo o período em que esteve ali. Diante do choro, o rapaz sentado ao seu lado chegou a demonstrar irritação e colocar um fone de ouvido.
A militante feminista Bia Garbelini, mãe de Sofia, de nove anos, relata ter sido mal-recebida em uma série de eventos, mesmo os de cunho feminista. “Já tive que sair no meio de reuniões porque, como ela não parava quieta, as pessoas me olharam feio porque eu estava atrapalhando. Uma vez, em uma conferência municipal de políticas para mulheres, entrei na sala do grupo de trabalho e a coordenadora me viu com minha filha e disse ‘Ah, não, não tem lugar para vocês'”.
Bia conta também que, logo que começou a se relacionar com sua esposa, foi convidada para almoçar com umas amigas dela. Ela perguntou se poderia levar a menina e, além de não ter resposta, o grupo foi encerrado e apagado, e nenhum convite foi feito depois disso.
Para Daniela, é inegável que é essencial fortalecer o movimento de desromantizar e desnormatizar a maternidade, que não deve ser imposta a ninguém, mas sem dar um salto para querer viver em um mundo sem crianças. “Acho que precisamos refletir profundamente sobre frases do tipo ‘Não é apropriado levar crianças para tal evento’, porque isso vira porta de entrada para uma lógica perversa de exclusão do outro. A pessoa pode ser child free, mas não pode exigir viver em um mundo child free“, defende.
Daniela também propõe um questionamento interessante: “Quando falamos de discurso de ódio, estamos falando do que uma pessoa sente diante do diferente. Como isso pode se aplicar diante de uma criança? Essa é uma das poucas experiências totalizantes: todo mundo foi criança, ninguém nasceu adulto. É muita autodepreciação da humanidade olhar para um projeto de humano como nós com tanto ódio e negação”.
Direito da criança ao espaço público
A antropóloga, educadora e coordenadora do Mapa da Infância Brasileira (MIB) Adriana Friedmann entende manifestações como essas como um retrocesso. “O espaço público é de todos, e as crianças têm os mesmos direitos que os adultos. É um ator social, um cidadão como qualquer um”, fala.
O espaço público e as cidades, no entanto, têm sido pensados por e para adultos. “Escutamos muito pouco as crianças, como veem seu território, o que propõem e o que gostariam de ver. Elas têm olhares e veem coisas que não vemos, têm ideias incríveis. Claro que não é para fazer tudo o que elas dizem, mas colocá-las como participantes de uma construção, com um olhar que revitalize praças, estimule o contato com a natureza e com cada território”.
De acordo com a especialista, incentivar uma mentalidade de exclusão das crianças também pode gerar uma reação ruim, oposta ao que “estamos buscando em educação, participação e no movimento de se tornar um cidadão”. Por outro lado, Adriana destaca que é importante lembrar que, nos últimos 20 ou 30 anos, temos observado um movimento inverso: “Shoppings, restaurantes e outros espaços têm criado ambientes lúdicos para crianças. Como um todo, nossas cidades têm caminhado para serem mais amigáveis para crianças. Esse movimento contrário não deve conquistar tanta força”.