Celular é presente de natal para criança?

Antes de ceder, famílias devem conhecer os riscos do uso excessivo das telas e entender como podem mediar essa relação, alertam especialistas

Carla Bittencourt Publicado em 11.12.2023
imagem sobre o celular ser um presente de natal para crianças mostra um menino branco, de cabelos lisos e camisa quadriculada sentado no sofá, olhando para uma tela de celular enquanto o pai, um homem branco de barba, está ao lado dele sorrindo.
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Resumo

Hoje, 44% das crianças brasileiras de 0 a 12 anos têm celular e gastam nele, em média, 3 horas e 53 minutos. Especialistas alertam para os impactos do aparelho no desenvolvimento e sugerem como famílias podem mediar essa relação, antes de ceder ao presente de natal.

Cecília acordou e sentiu algo muito quadrado em cima dos ombros. Levantou para escovar os dentes e quando se olhou no espelho: “Aaaaaaaah! Minha cabeça está QUADRADA!” A personagem do livro “A menina da cabeça quadrada” é inspirada em uma garota de mesmo nome que, aos 7 anos, vivia grudada no tablet. Ao contar a história da irmã mais nova, a escritora e editora baiana, Emília Nuñez, abordou o tema das telas, um dilema presente em muitas famílias. E com a chegada do fim do ano, adultos devem começar a se preparar para receber esses dispositivos eletrônicos como pedido de presente de natal.

O livro é de 2017, mas se fosse publicado hoje, a cabeça de Cecília dificilmente teria outro formato. Atualmente, 44% das crianças brasileiras de 0 a 12 anos têm o próprio telefone. Elas chegam a passar, em média, 3 horas e 53 minutos por dia na frente da tela, mostrou a pesquisa Crianças e Smartphones no Brasil, realizada pela Mobile Time e pela Opinion Box. De acordo com o estudo, 30% dos bebês de 0 a 3 anos já expressam desejo pelo celular. O número sobe para 72% entre crianças de 4 a 6 anos; depois para 87% na faixa etária dos 7 aos 9 anos. Entre 10 e os 12 anos, a porcentagem é de 92%.

“Minha avó e meu pai brincavam que a cabeça da Cecília ia ficar com o formato da tela. Pensei no livro como um recurso lúdico, para alertar sobre o equilíbrio entre a tecnologia e as brincadeiras na infância”, conta a autora. Sua filha Maria Luiza, de 8 anos, quer um celular, mas não será o presente de natal deste ano. Por enquanto, o combinado é usar o da mãe emprestado, com 100% de supervisão e tempo limitado de uso, para não ficar com a cabeça igual à da tia. Ao desconectar, ela busca diversões redondinhas, seja a bola ou as brincadeiras na natureza, como na história que a mãe escreveu.

“Na nossa casa, a gente faz vários combinados para usar menos telas. Eu divido o celular com meu irmão, ele joga, depois eu jogo. Quando o tempo acaba, a gente vai brincar, ler, escrever, desenhar”, diz Malu. O irmão, Gael, de 10 anos, nunca pediu um celular de presente. Para jogar com os amigos, ele reveza com Malu e sente que não faz falta ter o próprio telefone. “Gosto de jogar, de ler, de assistir e busco fazer isso com equilíbrio”, ensina o menino. O tempo, às vezes, passa do planejado, mas isso é resolvido tendo a “Mãe que Lê” como referência. Malu explica: “Confesso que uso bastante as telas, mas minha mãe me incentiva a ler, a escrever, me ensina palavras novas. Contando com a escola, eu leio muito mais do que fico no celular.”

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Arquivo pessoal

Malu, 8, e Gael, 10, equilibram o tempo de telas com leituras e brincadeiras ao ar livre para não ficarem com a "cabeça quadrada"

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Arquivo pessoal

Emília Nuñez, autora do livro “A menina da cabeça quadrada” e vencedora do Prêmio Jabuti 2023, com o livro “Doçura”, que faz uma homenagem analógica às mães, pais e professores que incentivam as crianças a ler

Emília pensa em dar um telefone aos filhos apenas quando cada um fizer 13 anos. Até lá, ela mostra as habilidades necessárias para que os dois usem as telas de forma segura, equilibrada e saudável. Para a escritora, o exemplo dos adultos é fundamental. “Acho que a maior cabeça quadrada da família sou eu. Quando estou mais desconectada e disponível, eles recorrem menos às telas”, comenta. Vencedora do
Prêmio Jabuti, seu livro mais recente, “Doçura”, faz uma homenagem analógica a mães, pais e professores que incentivam as crianças a ler.

“Nenhuma tela vence a atenção e o carinho de um pai ou de uma mãe quando brinca ou lê com seu filho”, diz Emília Nuñez.

Celular como presente de natal: qual o problema?

A Sociedade Brasileira de Pediatria não recomenda o uso de dispositivos eletrônicos antes dos dois anos de idade. Mesmo assim, bebês chegam ao consultório da psicóloga e professora da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, Isabella Queiroz, por causa das telas. São crianças pequenas que não falam e que têm sido alimentadas por mães e pais enquanto estão distraídas, vendo vídeos no celular. Queiroz conta que os bebês lidam com as telas com habilidade surpreendente, mas não interagem com os outros, fator essencial para a constituição do psiquismo infantil.

A psicóloga explica que o ser humano não nasce com a noção de que tem um corpo, de quem ele é ou de como articular sua imagem ao seu nome. Mas essas ideias vão sendo processadas a partir da relação com o outro. Antes de falar, ainda na fase das vocalizações, o bebê emite um som e espera o outro se pronunciar. Assim, estabelece uma conversinha muito particular que recebe o nome de protoconversação.

“Ao ser exposta às telas, a criança pequena não adquire a possibilidade de exercitar essa protoconversação, de se colocar, de vivenciar as trocas de olhares, da voz, do aconchego”, adverte a psicóloga, que está desenvolvendo uma pesquisa sobre vulnerabilidade em crianças a partir de intoxicações eletrônicas. Ela observa que, mesmo quando o celular é oferecido em uma etapa posterior, a presença do outro, seja da mãe, do pai ou de um cuidador, se reduz, prejudicando o desenvolvimento infantil.

Queiroz também pesquisa o acalantar de bebês no contexto da triagem neonatal, outro aspecto prejudicado pelo acesso precoce às tecnologias. Ela pontua que, quando os adultos escolhem substituir a voz por gravações e vídeos, algo precioso se perde. “Quando uma mãe ou pai canta para o bebê, olham nos olhos, envolvem no colo, modificam o tom de voz. Neste ato de cantar existe uma interação e um reconhecimento que a máquina não é capaz de promover e que fará falta”.

Consulta pública

Em outubro, o Governo Federal abriu uma consulta pública para entender a relação de crianças e adolescentes com as telas. As contribuições de representantes da sociedade civil, como do Instituto Alana, vão embasar a criação de um guia para orientar famílias, educadores e profissionais da saúde e da assistência social. Desta forma, o objetivo é garantir o direito à tecnologia e a proteção do desenvolvimento neurológico, da saúde mental e das relações sociais das novas gerações.

“O que estamos vendo é um uso cada vez mais precoce e prolongado, o que é extremamente prejudicial”, critica a pediatra e professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UFRJ), Evelyn Eisenstein, que participa da consulta. De acordo com ela, a sociedade deve debater amplamente o acesso às telas na infância. Sobretudo, porque o principal motivo para dar ou emprestar um celular a uma criança não é manter contato com as famílias, estudar ou desenvolver habilidades com a tecnologia. Segundo o panorama da Mobile Time e da Opinion Box, a maioria das famílias dá (60%) ou empresta (55%) o celular para entreter os filhos enquanto os adultos fazem outras tarefas. Em contrapartida, a principal razão para não dar nem emprestar um smartphone (70%) é por entender que o aparelho pode ser prejudicial ao desenvolvimento.

Para a especialista, as grandes empresas de tecnologia entenderam rapidamente como ocupar esse nicho e estão monetizando a participação das crianças nas redes. Ao acessarem as tecnologias mais cedo e sem maturidade, elas se tornam dependentes e vulneráveis ao objeto, que não é um brinquedo.

“A criança precisa aprender regras de segurança e de privacidade, mas muitas são novas para isso. Por que dar um celular quando se pode dar uma bola, uma bicicleta ou um curso de música ou desenho?”, questiona Eisenstein.

Relação de confiança

Quando a pandemia levou a sala de aula para dentro de casa, Alice precisou aderir às plataformas e grupos on-line. Assim, aos 8 anos, a menina não tinha celular, ao contrário de muitos colegas. A mãe, a terapeuta ocupacional Tiza Mendes, decidiu comprar um aparelho novo e dar o velho à filha, sem prever que, com as demandas escolares, viria também o acesso às redes sociais.

No ano passado, quando fez 10 anos, Alice ganhou um novo celular, mas concordou em usar o Instagram e o Tik Tok apenas pelo telefone da mãe. Além do Family Link, Tiza limitou o acesso a uma hora e meia durante a semana. Além disso, Alice precisa seguir as regras da escola, que proíbe o uso do smartphone até o 7º ano do Ensino Fundamental. “A gente conversa muito. Digo que, quando ficamos presos a um celular, perdemos a oportunidade de fazer coisas legais, de usar a criatividade”, conta a terapeuta.

A sugestão do doutor em psicologia e especialista da área de educação digital do Instituto Alana, Rodrigo Nejm, é justamente o diálogo franco, baseado na confiança. Desse modo, a criança e o adolescente ficam cientes de que existem situações de perigo. Então, podem contar a sua família, sem medo de julgamentos. “Muitas meninas e meninos sofrem em silêncio depois de passarem por coisas bizarras na internet com medo de os pais bloquearem ou tomarem o celular”, afirma o especialista.

O filho mais novo, Miguel, de 8 anos, também quer um celular, mas Tiza tenta resistir emprestando o dela para o menino jogar. O combinado é acessar o YouTube apenas pela televisão, que permite maior controle dos adultos. “Sei que não devemos usar muito tempo, porque faz mal para a visão, às vezes dá até dor de cabeça”, confessa Miguel, que vai ganhando experiência de uso com a irmã.

Nejm deixa um alerta para os pais que entregam os eletrônicos aos filhos achando que são nativos digitais:

“Ninguém nasce pronto com habilidade social, emocional, com noções de segurança e proteção. Diria até que nem para a tecnologia, que muda o tempo todo”, diz Nejm.

Ainda, para as famílias que ainda estão inseguras, o especialista sugere o uso inicial de celulares mais simples, desconectados da internet. “Essa é uma alternativa superinteressante, junto com a ativação e configuração de controles parentais.”

Voz ativa das crianças

Faz seis meses que Tifanny, de 13 anos, ganhou um celular de aniversário, mas já planeja ajudar a família a comprar um novo como presente de natal. Ela quer uma câmera mais potente para gravar vídeos, ensaiando a futura carreira de jornalista e influencer. “Desde os 4 anos de idade, sonho com um iPhone”, relata. Jéssica Matos, atendente e mãe de Tifanny, apoia o sonho da filha, mas contou que o pedido ainda não cabe no orçamento.

Mãe e filha conversam muito sobre o uso seguro de telas e, principalmente, sobre redes sociais, onde a menina quer ser mais atuante, mostrando o seu dia a dia. Ela gosta da escola, da família, de brincar, viajar e dançar. O que não gosta também vai virar pauta: “Quero falar sobre racismo, bullying, mentira, falsidade e sobre pessoas que passam fome”.

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Arquivo pessoal

Tifanny sonha com a carreira de jornalista e influencer. Ela quer ter voz ativa, falar sobre racismo, bullying, mentira, falsidade e pessoas que passam fome.

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Arquivo pessoal

Para poder usar o celular, os irmãos Alice, 10, e Miguel, 8, fazem acordos com a mãe Tiza: Instagram, YouTube e Tik Tok, apenas com a supervisão dos adultos.

Em sua tese de doutorado a psicóloga Bianca Orrico investigou crianças que, como Tifanny, não são destinatários passivos de conteúdo na internet. Mas sujeitos políticos ativos, que defendem questões importantes, como a luta ambiental. As redes sociais mostram um cenário de diferentes infâncias e possibilidades de modos de vida, observa Orrico, que é responsável pelo Canal de Ajuda da Safernet, organização que promove o uso consciente e seguro da internet.

“Esse é um tema muito complexo. Pois requer pensar na criança como sujeito de direitos e voz ativa nas redes que não foram desenhadas para elas. Precisamos avaliar até que ponto é um desejo da própria criança e garantir que essa exposição seja gerenciada e protegida”, afirma a pesquisadora. Além do diálogo sobre privacidade e segurança, a especialista orienta que as famílias usem filtros ou até desabilitem comentários, para evitar bullying e textos extremistas ou inapropriados. Segundo Orrico, é fundamental acompanhar a criança o tempo todo, para que ela vá construindo segurança.

“As famílias precisam assumir o compromisso de estudar as plataformas e os direitos das crianças”, defende Orrico.

Da mesma forma, é muito importante que adultos e crianças estejam atentos à exploração comercial que sustenta as plataformas de redes sociais, adverte Rodrigo Nejm. Isso porque há diversos tipos de publicidade infantil direcionada e, às vezes, velada. “É um conteúdo que parece espontâneo. Uma criança falando da sua vida, mas que na verdade tem uma indústria da publicidade financiando. Aquilo que fingem ser o quarto da criança é praticamente um estúdio, com 10, 12 pessoas trabalhando atrás da câmera”, diz Nejm.

Por fim, o psicólogo comenta que o interesse por determinadas marcas pode estar mais relacionado ao desejo por status e reconhecimento social do que pela tecnologia em si. “Essa questão leva à outra, muito grave, que é o impacto ambiental da tecnologia, banalizada com a troca frequente de celulares, o que contribui para o aumento de lixo eletrônico e para a crise climática que estamos vivendo”. Para fugir dessas armadilhas, o especialista ressalta a importância da educação midiática. “É o que vai dar habilidade para a leitura crítica e fazer a criança perceber que esse reconhecimento, buscado por meio de uma disputa, pode ser o convívio com as diferenças”, defende.

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