Zeni de Teixeira Bomfim nasceu em Jequié, interior da Bahia, na época em que o “para sempre” era a ideia mais comum sobre os matrimônios civis e religiosos do país.
Aos 78 anos, ela não se arrepende de nada na vida, exceto da adolescência que não teve tempo de aproveitar: enquanto algumas meninas de sua idade brincavam na beira dos rios, Zeni já era chefe de família.
“Me casei aos 14 com alguém 15 anos mais velho que eu. Um ano depois, nasceu meu primeiro filho”, lembra a baiana, que foi mãe doze vezes
Apesar da idade, as memórias que machucam nunca falham, e ela descreve com detalhes a violência doméstica que sofreu, iniciada 15 dias após os papéis serem assinados no cartório. “Eu sofri muito sem falar nada aos meus pais. Não queria decepcionar, pois era a primeira filha a casar”, conta.
Mais de meio século depois, a história de Zeni ainda se repete em vários cantos do país. São mais de 877 mil mulheres em casamentos formais e informais aos 15 anos, de acordo com o estudo Ela Vai no Meu Barco: Casamento na Infância e Adolescência no Brasil, produzido entre 2014 e 2015, pela ONG Instituto Promundo, em parceria com a Plan Internacional. Os dados coletados pela pesquisa apontam para a natureza predominantemente informal e consensual das uniões.
Uma questão de gênero
“O casamento infantil é, na verdade, o casamento de meninas”
A afirmação é da gerente técnica de gênero da ONG Plan International Brasil, Viviana Santiago. Embora essa prática envolva ambos os sexos (são 88 mil, entre dez e 14 anos, em uniões consensuais, civis e/ou religiosas no Brasil), o casamento infantil é uma questão que atinge sobretudo as mulheres e está inserida em um contexto de desigualdade de gênero.
O relatório Fechando a Brecha: Melhorando as Leis de Proteção à Mulher contra a Violência, publicado pelo Banco Mundial, calculou que 36% da população feminina no Brasil se casa antes de completar 18 anos. Esse cenário faz o país liderar o ranking de casamentos infantis na América Latina e ocupar a posição de quarto lugar mundialmente, em números absolutos.
De acordo com Santiago, a pobreza é um agravante e não a causa mais evidente, como muito se pensa.
“Se fosse assim a proporção de meninos casados seria igual a das meninas”, garante. Ela avalia que, diante de condições financeiras precárias ou de dinâmicas familiares de cerceamento e violência, o casamento é visto como sinônimo de segurança econômica ou como esperança por uma vida melhor.
Porém, o que soa como conquista de liberdade, muitas vezes tem o efeito contrário e resulta na perda de capacidade de decisão antes mesmo de adquiri-la legalmente.
“Muitas vezes, essa menina perde o contato com sua família e com a comunidade, não podendo estudar e conviver com amigas e amigos”
Motivações para casamento na infância e adolescência
Uma série de outras consequências pode estar estreitamente relacionada ao casamento infantil, entre elas a gravidez, a violência doméstica e a evasão escolar.
“Muitas delas, ainda que matriculadas, não conseguem frequentar a escola, e uma parte considerável dos maridos não permite que estudem por ciúmes”
A relação desigual de poder também é mencionada pela gerente técnica de gênero da Plan Internacional como potência para a violência, já que a média de idade dos maridos, segundo os estudos, é de nove anos mais velhos.
“Com o casamento, tem-se um impacto na política de saúde, de assistência social e de segurança pública. Ao mesmo tempo, as perdas econômicas quando as meninas não desenvolvem seu potencial e não conseguem se inserir no mundo do trabalho, são avaliadas em trilhões”, completa a especialista.
É o que mostra o estudo do Banco Mundial “Mulheres, Empresas e o Direito”: taxas baixas de escolaridade resultantes do casamento infantil influenciam na capacidade de obter um emprego.
Em lugares em que a idade legal para o casamento é 18 anos, o número de mulheres com ensino médio é maior. Esses impactos nos levam a uma encruzilhada: sem condições de trabalhar e em posição de inferioridade econômica, como sair, então, do ciclo da desigualdade e violência?
Um desafio global
Esse tipo de casamento é entendido internacionalmente como uma violação aos direitos das crianças e adolescentes, conforme a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança (CRC), assinada e ratificada pelo Brasil em 1990. Junto dela, outras normas vêm auxiliando na mudança de postura em relação a práticas históricas, influenciadas por costumes e tradições, como o casamento infantil.
Mesmo assim, anualmente, 15 milhões de meninas se casam antes de completar 18 anos, de acordo com o Banco Mundial. Em Bangladesh, Moçambique e República Dominicana, por exemplo, esse é o destino de mais de 40% das adolescentes.
Em 2015, visando reverter esse cenário, a Organização das Nações Unidas incluiu a eliminação de casamentos prematuros, forçados e de crianças, considerados nocivos, na Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável.
Os esforços internacionais em se acabar com os casamentos infantis também são destacados no documento Ending Child Marriage in a Generation: What Reserach is Needed?, produzido por pesquisadores da GreeneWorks. “Sabe-se que o casamento infantil é uma questão ‘universal’, uma vez que acontece em todas as regiões e entre membros de todas as religiões”, diz o texto.
Nesse sentido, a publicação ressalta a necessidade de elaboração de pesquisas segmentadas que analisem as especificidades de cada país e região, não apenas a partir do recorte geográfico, mas de religião, etnicidade, educação, classe social, entre outros aspectos. Esses dados revelam características singulares das subpopulações nacionais, informação essencial para se poder trabalhar de forma mais efetiva com o tema.
Lacunas na lei
No Brasil, a legislação estabelece 18 anos como a idade legal para a união matrimonial, permitindo anulação do casamento infantil. Fora da maioridade civil, existem condições especiais previstas no Código Civil, permitindo a união dos 16 aos 18 anos incompletos, se houver autorização dos pais (ou consentimento dos representantes legais). Antes dos 16, a lei permite o casamento em caso de gravidez.
“Em outras palavras, a lei sugere na prática que meninas podem se casar antes dos 16, enquanto meninos não podem – tornando-a discriminatória contra meninas, já que apenas meninas podem engravidar”
O texto acima é do estudo “Ela Vai no Meu Barco”, do Instituto Promundo. Essa exceção em caso de gravidez é compartilhada por outros quatro países na região: Venezuela, Guiana, Guatemala e Honduras.
Como agir?
Atualmente, tramita no Congresso o Projeto de Lei 7119-2017, que visa proibir o casamento de crianças e adolescentes antes dos 18 anos, barrando as brechas da lei atual. “Não será permitido, em qualquer caso, o casamento de quem não atingiu a idade núbil” (art.1517). No Código, as relações com menores de 14 anos configura “estupro de vulnerável”, mesmo havendo consentimento da criança ou adolescente.
Para a gerente técnica de gênero da Plan International Brasil, Viviana Santiago, é preciso avançar no esforço de aprovação desse projeto de lei, além de fortalecer políticas públicas para que meninas tenham acesso a direitos que possibilitem um outro repertório de escolhas. Ela ainda reforça que o casamento infantil é um problema que desafia a sociedade como um todo.
“É preciso colocar em questão as normas sociais de gênero, que, produzindo papéis tradicionais, confinam meninas à ideia de objeto a ser consumido por homens adultos”
Para Santiago, esta é uma ideia que nega a humanidade e a cidadania plena, não reconhecendo crianças do sexo feminino enquanto pessoas em situação de desenvolvimento.
Leia mais
O retrato de uma infância interrompida
O filme “Nojoom, 10 anos, divorciada”, dirigido por Khadija Al-Salami, conta a história de uma menina que se casa à força com um homem do triplo de sua idade. Violentada após a união, ela luta pelo divórcio. O longa-metragem é baseado na história da menina iemenita Nujood Ali que ganhou repercussão mundial. Assista ao trailer: