Se vasculhar bem suas memórias mais profundas, talvez se lembre que muitas de suas lembranças sonoras mais antigas são canções de ninar, entoadas por vozes familiares, talvez de uma avó, um pai, mas muito provavelmente de uma mãe. A voz materna e as canções de ninar estão aí para nos lembrar que certos sons são fundamentais para sustentar a arquitetura de nosso ser, chegando até a ter potencial curativo.
Nesta matéria, convidamos a psicóloga e especialista no assunto Silvia de Ambrosis Pinheiro Machado para conversar sobre a importância do acalanto para o afeto, a construção da identidade e o crescimento saudável do bebê. E, mais do que isso, para os pais e cuidadores terem sempre em mente que uma música cantarolada para uma criança ainda na barriga não é nunca um gesto à toa, mas sim um ato de amor e de criação de laços seguros. Para ela, a canção de acalanto tem a potência tanto de afugentar medos e angústias das crianças, quanto de tranquilizar a relação dos adultos com o mundo, criando assim um ciclo positivo de autocuidado e afeto com o outro.
Autora do livro “Canção de ninar brasileira: aproximações“, Silvia acompanhou diversas famílias recém-nascidas durante os períodos de pré e pós-natal e primeira infância para compor sua pesquisa, publicada em 2017 pela Editora da USP. Na obra, ela analisa as canções de ninar do ponto de vista contextual brasileiro. Afinal, para além de seu efeito apaziguador, tais músicas revelam a trajetória histórica do povo brasileiro – em suas belezas, e também em suas tragédias, como a forte presença de marcas escravocratas em algumas letras, como veremos adiante.
“A delicadeza é a matéria da canção de ninar, mesmo quando ela manifesta medos e angústias”, diz a autora, no livro.
A canção de ninar brasileira já foi objeto de estudo musical, etnográfico, folclórico, sociológico, psicanalítico; no âmbito poético-literário, porém, havia uma lacuna que este livro busca preencher. A autora analisa um vasto repertório de canções (reproduzidas no CD que acompanha a edição), desde aspectos formais até os contextos de sua gênese, levantando questões como as nuances entre produções populares e eruditas, entre o anonimato coletivo e a autoria no mercado fonográfico, entre o que é “importado” e o que é “autêntico” do Brasil.
Considerando que uma canção de ninar é o primeiro objeto cultural a que somos expostos, ela é parte crucial do ambiente que cerca não só as famílias e os bebês, mas também os profissionais de educação e saúde que acompanham as crianças em seu desenvolvimento. Silvia explica que a audição é um dos primeiros sentidos desenvolvidos durante a gestação.
“A audição do feto é um sentido importantíssimo na sua comunicação com a mãe e com o mundo exterior”
“Mais importante ainda é pensarmos que a audição é um forte aliado na adaptação inicial do recém-nascido: batimento cardíaco da mãe, vozes conhecidas, cantigas escutadas no último trimestre de gravidez são sonoridades familiares ao bebê e podem acalmá-lo em situações de desconforto adaptativo”, pondera.
A fala de Silvia chama a ateção para um ponto interessante: todo e qualquer som ouvido durante os últimos três meses da gestação formam o que podemos chamar de inventário de primeiros sons da criança. E, quando falamos “som”, vale considerar que não são só canções ou assovios de afeto, mas também ruídos negativos, como barulhos muito altos da cidade ou de discussão entre as pessoas. Tudo isso vai formando as primeiras referências de mundo da criança, e construindo sua relação com a vida exterior ao útero.
“Os ruídos e sons, organizados musicalmente em canções ou não, fazem parte do ambiente do corpo materno e, certamente, influenciam a vida do bebê intra-útero, como todos os demais elementos e estímulos”
Mas afinal, quando o bebê ainda está crescendo na barriga, com seus sentidos aos poucos aflorando, de que forma as canções de ninar influenciam seu desenvolvimento. Como isso acontece, e como se reflete depois?
“O corpinho do feto está contido pelo da mãe, que está contido pelo ambiente conjugal e familiar, que está contido pelo ambiente comunitário, que está contido pelo ambiente econômico-social, e assim por diante. São ambientes inter-relacionados que se afetam mutuamente”, defende a pesquisadora.
“Mas por que cantar para um bebê se ele ainda não entende as palavras?”, muitas pessoas podem se perguntar. O mesmo se aplica à leitura para bebês ou mesmo a outras áreas culturais, como teatro da bebês, assuntos dos quais já falamos aqui no Lunetas. Para responder a essa questão, vale pensar no bebê como um sujeito em constante construção, e cada estímulo recebido funciona como um tijolo em sua estrutura de indivíduo. Compreender tal coisa passa por enxergar os bebês como sujeitos, e não como um “vir a ser”. Como disse Ailton Krenak em entrevista para o portal, a criança não vai ser, ela já é.
Nesse sentido, Silvia diz algo que ajuda ainda mais a pensar no potencial sensível dos bebês, invertendo a que costuma ser a lógica de pensamento da maioria das pessoas.
“Em geral, tendemos a observar e buscar compreender como afetamos os bebês, quase como forma de nos desviarmos do impacto transformador que eles exercem sobre nós. A chegada de um bebê renova mesmo o mundo, mas somos muito conservadores para aceitar isso.
“Guimarães Rosa escreveu, no ‘Grande Sertão: Veredas’: ‘O menino nasceu, o mundo tornou a começar'”
Confira a entrevista completa
Lunetas – O que é a canção de ninar, e como ela impacta o desenvolvimento do bebê?
Silvia de Ambrosis Pinheiro Machado: A canção de ninar é um gênero poético-musical que nasce especialmente na hora de acalmar e levar ao sono as crianças pequenas. Por isso suas denominações: Dorme nenê, Cantiga para adormecer, Nana nenê, Canção de ninar. Vale lembrar que muitas canções de ninar, por suas qualidades estéticas e formais, ultrapassam essa funcionalidade mais imediata e tornam-se composições artísticas (por exemplo: “Acalanto”, de Dorival Caymmi; “Tudo tudo tudo”, de Caetano Veloso e outros). Enquanto objeto de arte, o acalanto ganha um potencial sensível, pois amplia a capacidade e o prazer de conhecer o mundo e a si mesmo.
“A canção de ninar cuida não apenas do adormecer das crianças, mas dos sentimentos dos cantadores”
Por isso, o conteúdo dessas canções revelam, muitas vezes, as inquietações dos adultos, suas necessidades e dificuldades, seus temores, suas lembranças de infância, etc.
“Cuidando de si mesmos, certamente este adultos estarão cuidando do ambiente em torno do bebê”
Lunetas – É verdade que as canções de ninar têm a mesma estrutura? Pode explicar por que?
Silvia: Certamente o efeito hipnótico das canções de ninar resulta de certos recursos musicais como brevidade, repetição, monotonia, lentidão, entre outros. A pesquisa de campo, bibliográfica e fonográfica das canções brasileiras, permitiu identificar uma importante unidade estética dos acalantos: o som totalmente nasal “hum”. Valeria uma continuidade do estudo desta presença em canções de outros povos e culturas.
Lunetas – As canções de ninar brasileiras têm alguma característica preponderante? Se sim, qual?
Silvia: Sim, podemos dizer que as canções de ninar tradicionais brasileiras, anônimas e transmitidas oralmente transportam elementos das principais vertentes (indígenas, africanas e europeias) que formaram a cultura brasileira. Do ponto de vista sonoro, por exemplo, a pregnância da vogal “u” em palavras e elementos originários dessas vertentes, identificáveis no texto das canções. Ou seja, a hipótese é de que o som de “u” seja um elemento integrador das diversas vertentes culturais formadoras do Brasil, que vem sendo transmitidas aos pequeninos nascidos no Brasil. Do ponto de vista do conteúdo, nota-se um grande número de canções que falam do cansaço materno, do acúmulo de tarefas, da pobreza, de medo e terror, do boi, do papão, assim como de temas e figuras protetoras, como anjos, santos, passarinhos, papai, mamãe, coruja.
“O fato de o Brasil ter sido um país que adotou por 400 anos o regime escravocrata, deixou marcas nas suas canções de ninar também”
Lunetas – Diz-se que a voz materna é o som de maior impacto para o bebê. Está correto afirmar isso? Por que isso acontece? E qual a diferença da voz de outros cuidadores, como o pai, a avó, por exemplo?
Silvia: Este tema não faz parte do meu estudo, mas sabe-se que a voz da mãe é rapidamente reconhecida pela criança e que todas as vozes familiares a ela durante a gestação, especialmente no último trimestre, serão reconhecidas após o nascimento.
Lunetas – Sabemos que, no Brasil, ainda se responsabiliza majoritariamente a mãe pelos cuidados com o bebê, contribuindo para uma sobrecarga da mulher e o afastamento afetivo do pai. Como fortalecer o vínculo paterno por meio das canções de ninar?
Silvia: Certa vez, realizei um atendimento domiciliar pós-natal para um casal cujo o bebê estivera internado por 20 dias na UTI neonatal. O pai desta criança, comovido e preocupado com a situação do bebê e da esposa, compôs uma quadrinha que falava da força do menino Pedro, relacionando-a com a permanência de uma pedra e com sua filiação a uma pedrinha preciosa (a mãe).
“Tanto o pai quanto a mãe começaram a observar que ao cantar este refrão, durante as visitas na UTI, o bebê apresentava melhoras nos sinais de vitalidade e por isso, a adotaram quase como ‘hino'”
Relatou-me o pai que, certa vez, ao sair do hospital, tendo deixado sua mulher sozinha com o bebê, desabou a chorar com criança no carro e só se acalmou ao cantar o “hino do Pedro”. Este relato é bastante significativo do efeito curativo do canto para pais e filhos! Vale pontuar também que os acalantos compostos por artistas como Chico Buarque, Caetano Veloso, Dorival Caymmi tiveram suas origens na experiência inicial de paternidade deles.
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A música “Tudo tudo tudo”, de Caetano Veloso, está no álbum “Joia”, de 1975, e tem uma versão também da dupla Palavra Cantada. É um bom exemplo de como as canções de ninar geralmente são compostas de repetições, para imitar os sons com os quais o bebê já está familirizado, como as batidas do coração e o ruído que ele ouve de dentro do útero. “Tudo comer / Tudo dormir /Tudo no fundo do mar”.
Já “Acalanto”, de Dorival Caymmi, foi feita para sua filha Nana Caymmi, e ganhou o mundo na voz de diversos intérpretes, como Roberto Carlos e Adriana Calcanhoto. Na letra, também é percebida a repetição, que reproduz uma toada de relaxamento a partir da terminação “em”. “É tão tarde / A manhã já vem / Todos dormem / A noite também / Só eu velo por você, meu bem”.
“Acalanto não revela apenas a tradição puericultural brasileira, mas produz um efeito de acolhimento, de colo maior, pois canta palavras que alargam nossa experiência de tempo, nossa compreensão do intervalo entre nascer e morrer. Ao proceder assim, Acalanto faz-se, entre outras coisas, continente de temores e terrores de viver: por isso acalenta”.
Abaixo, dê o play nas canções que a pesquisadora citou: