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Como o ato de brincar de boneca mexe com meninos e meninas?

Foto de uma menina que tem síndrome de Down deitada com sua boneca. Ela usa roupa jeans e a boneca usa azul

Ao ganhar de presente uma boneca que se parecia com ela, Clarice, 2, ficou muito feliz – afinal era mais uma companhia para as suas brincadeiras. Mas, para sua mãe, Ticyane Molin, aquela boneca não era só mais uma em meio às demais. A boneca, feita com as características físicas de sua filha, que é uma criança com síndrome de Down, permite que, segundo ela, “a criança compreenda que tem seu lugar no mundo, e este é respeitado e visto”.

Por ser uma representação de um ser humano, bonecas e bonecos podem contribuir, por meio da brincadeira, para o desenvolvimento emocional das crianças em relação a si e aos outros. Para a pediatra Luiza Menezes, também autora do livro “Livres brincar” e produtora de conteúdo no perfil “Infâncias fora da caixa”, brincar de boneca se relaciona com o que a criança vê ou não na sociedade. “A boneca pode ser um instrumento para gerar mais autoconfiança, porque a criança se reconhece ali. Ou, ainda, para praticar empatia ao brincar com uma boneca diferente de si”, explica.

Clarice ganhou a boneca Lili, feita artesanalmente com características parecidas com as suas

O boneco indígena de Camilo mostra que a brincadeira pode quebrar preconceitos e aproximar as pessoas

Menezes introduz a ideia de brincadeira simbólica, que é quando a criança traz para o universo da brincadeira atividades existentes na sua rotina e imita situações do dia a dia, por exemplo, quando ela brinca de fazer uma comida ou quando pega um objeto e diz que é um telefone. “Dentro desse contexto, o brincar de boneca representa os cuidados que ela observa em seu entorno, nas relações interpessoais que ela compreende”, afirma a pediatra.

“O ato de brincar de boneca é uma brincadeira simbólica, na qual está se desenvolvendo habilidades de cuidado – importantes para si e para o outro”

Ao brincar de boneca, a criança usa a imaginação para interpretar um papel diferente do seu: ela passa a ser a pessoa adulta, que cuida, e a boneca passa a ser a criança, que será cuidada. Suzana Marcolino, psicóloga e professora do setor de educação infantil do Centro de Educação (CEDU), da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), explica que toda brincadeira tem como motivação as relações sociais e a curiosidade da criança em viver o que ela vê ao seu redor, o que mobiliza uma série de processos internos. “Ainda que as situações sejam imaginárias, elas permitem que a criança entre em contato com emoções e sentimentos que são extremamente reais.” 

Na casa de Clarice, a mãe se alegra em ver a forma como a filha brinca com as bonecas. “Ela abraça, alimenta, cobre com a mantinha e coloca no bercinho. É muito lindo ver o desenvolvimento dela. Sei que a brincadeira de boneca é um reflexo do contexto em que a criança vive. É na brincadeira que ela imita as atitudes dos adultos cuidadores, aprende sobre relações e afetos. A boneca representa o outro, mas também como a criança é vista e entendida pelos outros”, conta Molin.

Brincar de boneca é para todas as crianças

Especialistas recomendam a importância de desmistificar o mito  de que “brincar de boneca não é coisa de menino”, o que é enfrentado por Daiane Lobo ao compartilhar fotos no grupo da família e em suas redes sociais de seu filho Camilo, de 1 ano e 11 meses, brincando de boneca. “Justamente pelas piadas que escuto, defendo publicamente que brincar de boneca contribui para o desenvolvimento de habilidades importantes das crianças independentemente do gênero.”

Sua percepção é comprovada por uma pesquisa realizada pela Universidade de Cardiff, no Reino Unido, em 2020, que revelou que, quando crianças brincam de boneca – mesmo quando brincam sozinhas -, a parte do cérebro associada à empatia é ativada e isso não está relacionado ao gênero. “Brincar de boneca pode ser uma oportunidade única de crianças praticarem interações sociais importantes para o desenvolvimento de habilidades socioemocionais, como empatia” [tradução nossa]. 

“O desenvolvimento da empatia parte do reconhecimento de que o outro tem necessidades diferentes das suas e de que cada um tem o seu modo de ser. É aí que está a potência dessa habilidade ser desenvolvida de forma lúdica”, aponta Marcolino. “Na brincadeira, as crianças experimentam ser outros e, ao mesmo tempo, experimentam os sentimentos dos outros”, aproximando os componentes cognitivo (se colocar na perspectiva do outro) e emocional (sentir como o outro sente) da empatia.

Por isso, o brincar de boneca não deve ser restrito às meninas, pois meninos também devem se conectar com suas emoções, sentimentos e se relacionar com o ato de cuidar – de si e do outro. Lobo observa esses mesmos comportamentos de cuidado no filho Camilo, mesmo com bonecos diferentes dele. “Camilo tem um boneco indígena, um boneco do Mandela e duas bonecas. Sendo uma criança branca, eu acho importante que ele entenda, desde cedo, o quanto nosso mundo é plural e que ele deve ter respeito por todos”, conta. 

A pediatra Luiza Menezes complementa com uma história. “Conta-se que um menino estava brincando com uma boneca. O pai fica perplexo ao ver a cena e, revoltado, pergunta o que o filho está fazendo. O menino, então, responde: ‘Estou brincando de ser pai'”. Para Menezes, a história ilustra que, muitas vezes, quando a criança brinca, ela está comunicando algo bem mais simples do que o adulto imagina. “São os preconceitos na mente dos adultos que alteram o contexto e impedem uma brincadeira cheia de potencial. É um erro a gente refletir na criança as nossas próprias limitações sociais”, diz.

“Se a criança vive relações empáticas hoje, na sua ‘vida real’, ela interpretará relações empáticas na brincadeira; se vive relações violentas, essas aparecerão enquanto ela estiver brincando. Mas, isso não significa que as crianças serão empáticas ou violentas no futuro, pois isso depende de outras relações que a criança terá em sua vida”, explica a psicóloga Suzana Marcolino.

“A brincadeira é como as crianças estão entendendo o mundo via imaginação”

Menezes complementa que é sempre importante que os adultos vejam a brincadeira como um meio pelo qual a criança se comunica com o mundo que a cerca. Assim, o brincar pode ser um meio de comunicação, tanto para transmitir uma mensagem para a criança quanto para entender o que ela está passando por meio da brincadeira

“Brincar é o idioma da infância”

O brincar com representatividade e inclusão

O presente recebido por Clarice, da marca paranaense A Fazedeira, foi bastante significativo para a mãe, pois o medo da exclusão costuma rondar famílias com crianças neurodiversas. “Foi um presente perfeito, cheio de afeto e amor. Como mãe de uma criança com deficiência, existe sempre o medo do seu filho, da sua filha, não ser incluído ou reconhecido como um igual”, desabafa Molin. 

O pesquisador e professor Everaldo Pereira, também autor do livro “Criança, comunicação e consumo”, percebe que ainda são as pequenas e médias empresas que garantem maior igualdade para o universo do brincar, abraçando iniciativas que fomentam a diversidade e a inclusão, emergindo diversas iniciativas recentes alinhadas com esses valores, segundo ele.

“Naturalmente as brincadeiras e os brinquedos refletem a época em que são criados e sofrem ao longo do tempo diferentes ressignificações”

Fontel Souza, uma das fundadoras da Anaty, marca paraense de produção artesanal de bonecas indígenas, concorda. “As grandes empresas de comercialização de brinquedos geralmente perpetuam narrativas dominantes sobre gênero, etnia e classe social. Prova disso é o quanto bonecas brancas, vestidas de princesas, imperaram entre nossas experiências como meninas e seguem fazendo parte de nosso imaginário quando adultas”, pontua. 

Por três gerações, mulheres Guaraní Anambé observaram essas mudanças. “Nossa matriarca, Luakam, sofreu pela falta de acesso ao livre brincar, devido a questões econômicas. Já sua filha, Atyna, não teve a oportunidade de se reconhecer em suas bonecas, pois eram todas brancas e em sua maioria loiras de olhos claros. Foi só a partir do nascimento de Anaty que a primeira boneca indígena surgiu na família, tornando a experiência de nossa menina e de outras crianças indígenas inclusiva e representativa”, conta. Fontel também reconhece a importância das bonecas chegarem a crianças não-indígenas, como é o caso de Camilo, viabilizando conexões com outras narrativas.

Diante de mudanças socioculturais, com diálogos mais aprofundados que estimulem uma inovação representativa e inclusiva, e combatam todo tipo de discriminação, os brinquedos podem se tornar aliados na construção de um pensamento livre de preconceitos desde a infância, defende Menezes. “As crianças não nascem preconceituosas, mas elas são bombardeadas por padrões completamente equivocados e estereotipados, que não fortalecem a sua própria autoestima, muito menos incentivam o respeito às diferenças.”

“Os brinquedos devem ser uma ferramenta de representatividade de toda sociedade, e não apenas de uma parcela”

Bonecas e bonecos plurais carregam em si “história, arte e conscientização a uma sociedade que tanto necessita dialogar com nossas existências e resistências”, lembra Fontel, “e a infância é um ótimo momento para começar essa conversa”.

Junto com os especialistas consultados nesta reportagem, construímos uma lista de indicações para que você possa se aprofundar no assunto “brincar de boneca”. Vem conferir:

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