Até um ano, Theo era uma criança como todas as outras que sua mãe, Andréa Werner, conhecia. Levantava, sentava, falava “mamã” e “papá” e batia palminhas. No entanto, nessa idade, começou a desaprender algumas habilidades e se mostrar mais sério. “Ele também tinha uma mania de rodinha com tudo. Pegava os carrinhos, virava e ficava girando a rodinha sem parar. Na rua, parava carrinho de bebê para ver a roda”, conta.
Mais tarde, quando os pais o chamavam, Theo passou a não olhar. Para Andréa, o filho teria uma “personalidade difícil”. Mas, com um ano e 11 meses, ao ingressar na escola, as professoras notaram algo estranho. “Elas pediram uma avaliação neurológica, e foi então que recebi o diagnóstico de autismo”. A jornalista e escritora descreve esse momento como uma espécie de luto.
“Pega você totalmente de surpresa. É um luto do que você idealizou, do que você perdeu. A vida agora é outra, mas você tem que trocar o pneu do carro em movimento, não dá para ficar deitada chorando”
Esse choque muitas vezes tem relação com os sintomas do autismo, que podem ser extremos e difíceis de entender. Também se deve ao fato de que o autismo não tem cura, muitas vezes tem causa imprecisa e, ainda que já se saiba muito sobre essa condição, essas informações não chegam ao público leigo.
Outro aspecto intrigante, de acordo com a psiquiatra e pediatra Raquel Guimarães Del Monde, é que o autismo não é uma doença
“É uma configuração cerebral, a maneira como aquele cérebro se desenvolveu, como uma área cerebral se conectou à outra, como cada neurônio se ligou ao outro. E, assim como essa configuração pode trazer dificuldades, pode trazer comportamentos vantajosos também”
Isso porque, por um lado, a comunicação, a socialização e o modo como o cérebro processa informações e sensações podem ser afetados. É comum, em bebês, notar que não reagem a brincadeiras, nem quando são chamados, que não olham e nem sorriem para os pais, que não imitam expressões e caretas ou demonstram atraso de fala.
Muitos autistas demonstram uma maior percepção de detalhes, notam o que a maior parte das pessoas não nota, têm enorme capacidade de concentração sobre assuntos que lhes agradam, boa memória e hiperfoco
Por conta disso, em seu livro “Longe da árvore – Pais, filhos e a busca da identidade” (Companhia das Letras, 2013), o jornalista norte-americano Andrew Solomon dedica um capítulo ao autismo, por entender que essa condição abre uma porta para a construção de uma identidade atípica, ainda que nem sempre seja compreendida.
Autismo não é doença, e sim um transtorno de desenvolvimento, e pode afetar mais ou menos a vida do indivíduo, a depender do seu grau e da forma como a condição é tratada pelas pessoas do entorno
Tipos e classificações
Hoje, fala-se muito em Transtorno do Espectro Autista para abordar essa condição. Raquel esclarece que o termo está associado à classificação norte-americana atualizada em 2013. Nos Estados Unidos, considera-se que o autismo varia como uma escala de cores – do preto ao branco, passamos por várias tonalidades.
Dentro desse espectro, há os níveis 1, 2 e 3, em que os leves são aqueles que precisam de pouco suporte para viver e desempenhar tarefas básicas; que os moderados precisam de algum suporte; e os severos necessitam de muito auxílio
Já no Brasil, de acordo com a CID10 (Classificação Internacional de Doenças), fala-se em Transtornos Globais do Desenvolvimento, que inclui o autismo infantil, o autismo atípico e síndromes como a de Asperger – um tipo leve de autismo.
Essas definições norteiam o momento de diagnóstico do profissional e são importantes para dar validade aos relatórios. Também ajudam a compreender uma condição que parece ter se ampliado nos últimos tempos: de acordo com a psiquiatra, há 20 anos, havia quatro casos de autismo para cada dez mil pessoas; hoje, estima-se que 1 a 2% da população esteja no espectro – nos Estados Unidos, fala-se em uma para cada 68 pessoas.
“Isso atordoou muita gente, levando a acreditar que se tratava de uma epidemia que podia ter relação com vacinas ou algum tipo de intoxicação”, explica.
“O autismo não aumentou, o que cresceu foi a nossa capacidade de reconhecê-lo”
O modo como os Estados Unidos estruturaram a educação inclusiva ajuda a comprovar isso. Ali, eles controlam o número de crianças com necessidades especiais há mais tempo nas escolas e, nos últimos anos, o número médio de alunos nessa condição se manteve mais ou menos igual, mas, enquanto caíram os casos de deficiência intelectual, cresceram os casos de autismo.
Sobre os mitos que cercam o autismo, e essa ideia de que sua causa ainda é misteriosa, Raquel defende os avanços que nos trouxeram até onde estamos, apesar do longo caminho a percorrer.
“É mais importante, hoje, o que sabemos do autismo do que o que não sabemos”
“Já há muito informação, por exemplo, do tanto que a genética está envolvida com o autismo. Mas essa informação muitas vezes não chega ao público em geral, ou chega muito distorcida”, afirma.
Tratamentos
Ainda que não haja modo de reverter o autismo, há diversos tratamentos que atuam ajudando o autista a adquirir as habilidades de que ele precisa para viver melhor em sociedade. Um dos principais pilares nesse sentido é a fonoaudiologia, voltada para adquirir a linguagem de forma geral, não só a oral.
Outro ponto de apoio é a psicoterapia de abordagem comportamental, que tem se mostrado mais efetiva do que a psicanálise, porque ajuda a trabalhar com um repertório mais amplo de comportamentos. Já a psiquiatria atua como forma de oferecer uma avaliação geral da criança, a fim de entender se há síndromes associadas ao autismo, quais são as prioridades no tratamento ou na terapia. Pode receitar também algum medicamento que auxilie, ainda que não haja medicação específica para autismo.
Há, ainda, a terapia ocupacional de integração, voltada para integrar as sensações dos autistas. Raquel explica:
“Os autistas costumam ter uma hipersensibilidade auditiva, sensorial ou visual”
“É como se a forma de perceber esses estímulos estivesse desregulada, por isso podem ser muito sensíveis e não suportarem barulhos como o de uma sala de aula cheia. Por outro lado, é comum não terem sensibilidade à dor e ao frio”.
A tecnologia também agregou muito ao tratamento, e muitos profissionais usam aplicativos de celular com figuras que facilitam o processo de comunicação e de compreensão de informações.
Entre os tratamentos atuais, um que tem se mostrado bastante eficiente é a terapia ABA, a análise de comportamento aplicada. De acordo com a psicóloga Daniela Landim, certificada na terapia pela Universidade de Columbia, em Nova York, a ABA surgiu em 1977 e contribui muito para o tratamento de autistas porque “promove comportamentos adequados, reduz os inadequados, ensina comportamentos novos e apresenta registros sistemáticos”.
Autismo não tem cura. Os tratamentos têm o objetivo de aumentar a autonomia das crianças e facilitar sua vida em sociedade
O início do tratamento com esse método consiste em uma avaliação de características como a capacidade de ouvir e seguir instruções, se a criança fala, se nomeia objetos, se faz pedidos, se aprende observando, qual é seu repertório de leitura e social e se interage com outras crianças e adultos. A partir da análise, são definidos alguns programas, objetivos com metas bem definidas – por exemplo: em duas sessões, a criança deve aprender a nomear dez itens. Para isso, é necessário um trabalho intenso, de grande frequência e muita repetição.
Em seus atendimentos, Daniela usa vários materiais, como apps para crianças com autismo, cartões com figuras e objetos, o que contribui para a capacidade de generalização do autista.
“Se mostramos só um cartão com a cor amarela, por exemplo, ele pode não entender que o amarelo é um giz também”, diz
Nas sessões, além da atuação dos terapeutas, crianças podem ser postas para brincar junto, com o acompanhamento profissional.
A terapia ABA pode ser usada para crianças de todos os níveis de autismo, e costuma apresentar bastante eficácia. “Se depois de alguns meses não aparecerem resultados, temos que rever os objetivos. Precisamos trabalhar com objetivos mensuráveis que podem ser cumpridos
“É importante dar passos pequenos, sem pular etapas. Cada criança autista é uma criança e vai ter seu progresso”
Maternidade e autismo
Quando descobriu que Theo, hoje com nove anos, era autista, Andréa tentou manter o emprego em uma multinacional. “Na época, a babá o levava para a terapia de táxi. Eu nem sabia direito o que estava acontecendo nas sessões, então resolvi parar de trabalhar e ficar em casa com ele”. Hoje, ela fala sobre autismo no site Lagarta Vira Pupa e tem dois livros publicados, “Lagarta Vira Pupa” e “Meu amigo faz iiiii”. Sobre o período depois do diagnósticos, ela fala: “Você vai conhecendo outras mães e vai acalmando o coração, vai aprendendo a lidar e como reagir a certas situações. É importante entender que você continuar sendo uma mulher e que a vida continua, e que ela é cheia de beleza”.
A transformação da vida a partir da chegada de uma criança autista é inegável. A psiquiatra Raquel, até o nascimento do seu filho Bruno, hoje com 19 anos, era apenas pediatra. Depois do diagnóstico do filho com a síndrome de Asperger, passou a estudar o tema e mudou de área. “Para mim o diagnóstico foi um alívio. Muito do que eu não entendia passou a ter resposta. Às vezes, o diagnóstico é mais um norte do que um luto em si”.
Autonomia e conquista
Com o acompanhamento devido, é possível conquistar a tão sonhada autonomia. Amanda Paschoal, de 26 anos, tem Síndrome de Asperger, está concluindo a faculdade de Artes Visuais e faz estágio em um centro cultural. Pretende trabalhar com educação inclusiva quando se formar.
Ela lembra que, quando pequena, sua mãe, psicóloga, estranhava seu jeito tímido, sua seletividade alimentar e sua forma literal de levar algumas informações.
“Na primeira série, eu ficava girando ao redor do mastro da escola. Quando brincava, não gostava de fingir, de usar a criatividade, mas de deixar tudo arrumadinho”
Depois do diagnóstico, Amanda começou a fazer acompanhamento com uma psicóloga especializada. Além disso, ter entrado em contato com a arte e a música, aprender a desenhar e a interpretar deu o que ela chama de “significado simbólico”.
Hoje, na faculdade, ela recorre a um programa para pessoas com deficiência quando precisa. Pede, por exemplo, apoio de um tutor e uma hora a mais na hora de fazer provas. Tem autonomia, mas precisa de ajuda para pegar um ônibus, por exemplo, caso contrário a experiência pode ser estressante, porque tem que ficar muito atenta para não se distrair.
Amanda conta que, quando era pequena, vivia dizendo que sonhava em morar sozinha na Floresta Amazônica e não precisar da ajuda de ninguém. Hoje, entende que o ser humano é social e que todos nós precisamos uns dos outros. E pergunta:
“Quase ninguém faz o próprio sapato, mas todo mundo usa sapato. Por que algumas deficiências são normalizadas e outras estigmatizadas?”
Como a literatura o assunto aborda o transtorno?
“Assim como meus pais entenderam mal quem eu era, outros pais devem estar constantemente entendendo mal seus filhos. Muitos pais sentem a identidade horizontal de seu filho como uma afronta. A diferença marcante de uma criança em relação ao resto da família exige conhecimento, competência e ações que uma mãe ou um pai típicos estão desqualificados para oferecer, ao menos de início. A criança também é diferente da maioria de seus colegas e, portanto, menos compreendida ou aceita por um amplo círculo. Pais violentos agridem menos os filhos que se assemelham a eles; se seu pai é um espancador, reze para que você tenha os traços físicos dele.5 As famílias tendem a reforçar as identidades verticais desde a primeira infância, mas muitas se opõem às horizontais. As identidades verticais em geral são respeitadas como identidade; as horizontais são muitas vezes tratadas como defeitos.”
“Todos os filhos são surpreendentes para seus pais; essas situações mais dramáticas são apenas variações sobre um tema comum. Assim como verificamos as propriedades de um medicamento estudando seu efeito em doses extremamente elevadas, ou examinamos a viabilidade de um material de construção expondo- -o a temperaturas altíssimas, do mesmo modo podemos compreender o fenômeno universal da diferença dentro das famílias olhando para esses casos extremos. O fato de ter filhos excepcionais exagera as tendências dos pais: aqueles que seriam maus pais se tornam pais péssimos, mas aqueles que seriam bons pais muitas vezes se tornam extraordinários.”
Trechos do livro “Longe da árvore – Pais, filhos e a busca da identidade”