Não seria exagero nenhum dizer que “A terceira margem do rio” é um dos capítulos mais importantes – e bonitos – da literatura brasileira. Publicado originalmente em 1962, no livro “Primeiras Estórias”, o conto ficou eternizado como uma fábula sobre a família, a loucura, o misterioso, o não dito.
O texto conta a relação entre um pai e um filho afastados por um desatino do pai, que resolve ir morar numa canoa para nunca mais voltar. Se a história se passasse hoje, provavelmente se trataria de mais uma narrativa sobre abandono paterno.
Para a nossa sorte, a arte ressoa, ganha novas perspectivas. Foi pensando nas dobras dessa história e nas possibilidades de desdobrar os seus sentidos que o escritor, ilustrador e pesquisador do livro para a infância Odilon Moraes se lançou na jornada de continuar o conto de Guimarães . O infantil “Rosa“, que estava previsto para sair pela Cosac Naify, acaba de ser lançado pela editora Olho de Vidro.
E fez isso com um intuito triplo: o de prestar uma homenagem ao autor de “Grande Sertão: Veredas” – em 2017, o completamos 50 anos sem Guimarães Rosa -, o de dialogar com sua própria paternidade e o de navegar pelas margens entre a palavra e a imagem dentro de um livro dito “infantil”.
Um rio, dois livros, três margens
Quem abre “Rosa” e passa pelas primeiras páginas, logo percebe que ali não tem uma história só, mas duas. Uma se passa no presente, e outra no passado, e cabe só a quem lê decidir qual é qual.
Ao mesmo tempo em que o texto remete diretamente ao conto de Guimarães, e conta a história de um pai que vai embora, a imagem acompanha o filho que retorna à casa de sua infância para revisitar as lembranças do pai.
“Logo que o filho nasceu, parece que o homem endoidou“, diz o texto, enquanto as ilustrações mostram o filho tomando rumo às memórias de sua infância.
No conto de Rosa, a relação entre pai e filho é marcado pelo silêncio. O pai vai embora sem dizer por que, e o filho fica sem entender o que aconteceu. A história termina sem dar muitas explicações, como é próprio da arte, que mais gera perguntas do que dá respostas.
- “Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais.” (Trecho de “A Terceira Margem do Rio”, de Guimarães Rosa)
Em “Rosa”, o filho vai em busca do amor do pai, ele quer saber por que ele partiu, se tinha algo a dizer, se deixou algum recado para trás. E o que ele descobre diz muito sobre paternidade, sobre vínculos afetivos, sobre o próprio tempo das coisas. Longe de querer revelar o final do livro, o que cabe dizer aqui é que a surpresa vale cada linha da leitura.
Assim, é dada ao leitor a possibilidade de se reconciliar com essa narrativa inacabada, não para preenchê-la, mas para ganhar novas perspectivas, como também é próprio da arte.
O resultado é uma história sensível que demanda não uma, mas várias leituras, e que convida o leitor de todas as idades para pensar em tudo o que cabe na relação entre um pai e um filho. Uma história que faz lembrar que o amor nada mais do que é uma construção.
Para quebrar os tabus, um repertório de “temas difíceis”
O escritor e ilustrador paulista Odilon Moraes tem uma obra bastante marcada – e internacionalmente conhecida – pelo trato delicado a assuntos considerados difíceis, como morte, separação e violência, e defende com vigor a conversa sobre esses assuntos em casa e na escola. É autor de livros premiados como “Lá e Aqui” (Pequena Zahar), que trata da separação de um pai e uma mãe na vida de uma criança, “O Matador” (Cosac Naify), sobre construção da identidade masculina em um grupo de meninos, e “Pedro e Lua” (Cosac Naify), cuja nova edição deve chegar às livrarias em janeiro pela Jujuba Editora.
Do que é feita a paternidade?
Odilon escreveu “Rosa” há mais de dez anos. Dias antes de a Cosac Naify acabar, o livro estava na boca da gráfica, mas não chegou a se concretizar. O projeto ficou guardado até que Odilon – que transferiu toda a sua obra autoral da Cosac para a Jujuba – resolveu procurar a editora Olho de Vidro. O tempo está muito presente em “Rosa”, até em sua edição.
Pai do pequeno João, Odilon experimentou a paternidade tardiamente. “Rosa” foi escrito antes de o menino nascer, e reflete não só sobre a relação com o filho, mas também com o pai, de quem o autor herdou o gosto por criar imagens. Enquanto esperava seu filho chegar, ele refletia sobre como deixaria de ser somente o filho de alguém para se tornar o pai de alguém.
Em entrevista ao blog Era Outra Vez, ele conta que o livro também traz essa dimensão da paternidade que se constrói e se anuncia com um tempo muito particular para cada um.
“A ‘gravidez’ masculina é feita de silêncio. A mulher tem corpo, matéria, ganha um volume na barriga. O homem não. A gravidez fica na cabeça, a espera pelo filho é cheia de silêncios. É no quase tornar-se pai que você dialoga com o seu próprio pai –e entende muitas das coisas paternas”
Não por acaso, o pai que ele cria em “Rosa” é bem diferente do pai de Guimarães Rosa. Enquanto um é misterioso e guarda distância do filho – afinal, é o menino quem conta a história em primeira pessoa e se enche de perguntas aflitas enquanto parece pensar em voz alta – o pai de Odilon Moraes é afetivo e ousa escolher para o filho um nome feminino e de muitas dimensões poéticas. “Vai se chamar Rosa. Rosa, só Rosa, mais nada. Rosa, igual nome de flor”, diz a história. Uma aproximação sutil com o tema gênero e infância. Ainda assim, o pai de “Rosa” também vai embora, como no conto original. “Rio abaixo, rio afora, rio adentro”, repetindo uma das sequências mais conhecidas de “A terceira margem do rio”.
Brincando com a função do texto e da imagem nas duas narrativas que o livro propõe, “Rosa” não se preocupa em caber em uma classificação indicativa, é um livro para todas as idades. Ao mesmo tempo, supõe que cabe à criança conhecer também as sombras que habitam o ser humano, ao conhecer a história de pais que vão embora, e filhos que passam a vida tentando entender o que aconteceu. Ou seja, carregar as tais “bagagens da vida” que aparecem no texto original, e entender que muitas histórias de famílias são feitas de mães solo. Por mais que gerem angústia, os tais “temas difíceis” não precisam ser evitados com a criança, pois são matéria-prima de ser e estar no mundo. Como diria o próprio Guimarães Rosa, “O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem“.