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As crianças representam um reencontro com a simplicidade

Num dia de nublado a chuvoso com o céu em dezenas de tons de cinza, havia três crianças pequenas, brincantes e na querência de deixar a imaginação criar as novidades com que ela costuma se divertir. Os adultos tomaram duas caixas de papelão, um pallet quebrado, algumas mochilas vazias e panos velhos amarrados aqui e acolá. Estava pronto um avião, elemento que se configurou em uma experiência carregada de sentido para todos. Os três tinham viajado há muito pouco tempo, em vôos de lá pra cá ou de cá pra lá. A memória das decolagens e pousos ainda podia ser sentida na pele, as frases vinham soltas, as hipérboles com os braços refletindo o prazer de compartilhar as sensações de excitação, medo e fascínio no cruzeiro aéreo.

Claro que houve colisões entre os desejos dos três infantes. Por vezes quiseram o mesmo assento, a mesma mala, o lugar do piloto. Expressaram seus quereres da forma corpórea como costumam fazer, e não faltaram gritos, lágrimas e alguns empurrões. Mas tudo era resolvido com uma conversa leve, espelhando o que sentiam, entrando na fantasia deles para construir alternativas para as dissonâncias. A leveza reinou sobre qualquer outra cena, o tempo não foi sentido, e agora me dou conta que meu olhar de encantamento me levou para dentro daquela aeronave, permitindo que a brincadeira me curasse de um pedaço de minhas rigidezes.

Enquanto os meninos brincavam, meu silêncio me conduziu aos tradicionais devaneios. Imaginei dois adultos competindo pela mesma poltrona de piloto, que poderia ser por exemplo a primazia da razão, a certeza de ter a posse da verdade ou da crença mais legítima sobre qualquer tema.

Diante desta querela, tantas vezes interrompemos o prazer da convivência e trocamos o afeto pela mágoa, pelo rancor, pelo ressentimento, pelo vínculo prestes a ser rompido.

E antes que os dois adultos estivessem ali, conversando, provavelmente precisariam de muito para fazer o encontro acontecer. Não poderia ser em qualquer lugar, com qualquer roupa, com qualquer carro. A adultez que teimamos em equiparar às acumulações, às competições tolas, aos parâmetros que só dificultam o encontro, a expressão do melhor em nós. Nós construímos uma expertise em fazer da vida um lugar de difícil acesso, do presente um momento para se pensar o futuro ou se amargurar sobre o passado doído. Perdemos o fio que nos conduz a nós mesmos, na simplicidade de que fomos feitos. Crescer é esquecer. Esquecer que somos arquitetos do tempo, do espaço que nos rodeia e nos preenche, e que a certeza não quer dizer contentamento.

Eu espero poder involuir nesta adultez que inventou a perdição de mim. Eu anseio pela próxima brincadeira das crianças que me reconstrua, que tenha a potência de deslocar-me de angústias que nem sei nomear. São antigas, porque já tenho vastos cabelos brancos. Talvez o branco seja a metáfora desta complexa forma de ser que inventamos: o avesso da simplicidade que um dia habitamos, e a necessidade de fazer o tempo virar ao contrário, transformando a lembrança na rota que nossas almas merecem percorrer.

A imagem que abre a matéria é de Thiago Queiroz

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