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Abandono afetivo paterno: pais apenas no papel ou nem isso

Imagem em preto e branco de uma criança sozinha sentada com a mão na testa olhando para o horizonte

Elizabete Oliveira dos Santos vive na pele o que é criar um filho sozinha. Ela mora na capital paulista e tem duas filhas: a mais velha tem 28 anos e a caçula, Laila, tem 14. A criação de ambas sempre foi uma tarefa apenas dela, tanto do lado financeiro quanto afetivo. Cozinheira desempregada no momento, ela tem feito tortas e doces para fechar as contas. Mãe solo, os pais de cada uma delas nunca assumiram a responsabilidade: esse é o abandono afetivo paterno. 

“Eu e minha mãe criamos a mais velha, o pai nunca ajudou em nada. Para a filha mais nova, o pai liga quando acha que tem que ligar e não colabora financeiramente, não faz questão de ser presente. Sempre lutei sozinha para criá-las”, afirma Elizabete. Ela se separou do pai de Laila há cerca de oito anos. No início, ele até entrava em contato com frequência mas, com o passar do tempo, essa atitude se tornou cada vez mais rara. A caçula perguntava bastante pelo pai, mas Elizabete conta que hoje isso diminuiu. 

“Ela sente bastante falta dele. Para os filhos, a ausência do pai sempre tem importância”

Elizabete faz parte da realidade de mais de 11 milhões de mulheres que criam seus filhos sozinhas, de acordo com o último levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), feito em 2015. Dados do mesmo levantamento apontam que as famílias compostas por um homem sem cônjuge e com filho representam apenas 3,6%.

Das mães solo que sustentam a casa e que têm filhos menores de 14 anos, 56% delas estão abaixo da linha da pobreza (quando a família vive com até 5,5 dólares por dia, parâmetro adotado pelo Banco Mundial). Já quando a responsável é mulher preta ou parda, o mesmo índice sobe para 64%. 

Foto: Arquivo Pessoal

Elizabete Oliveira dos Santos e a filha Laila, de 14 anos. “Sempre lutei sozinha  para criar minhas filhas”

A motorista de transporte escolar na capital paulista, Patrícia Ferreira Miranda, é mãe de William, 27. Ele nasceu com uma doença rara e sem cura chamada mucopolissacaridose, causada pela deficiência de um determinado tipo de enzima no organismo e cujas sequelas, dentre inúmeras, são dieta alimentar restrita, atraso no crescimento e deficiência cognitiva. William se alimenta apenas com ajuda de sonda e fica direto na cama. Ela é quem cuida 24 horas do rapaz e se vira financeiramente para dar a melhor qualidade de vida possível para o filho.

Patrícia conta que o pai dele o visitou até os seis anos de idade e o abandonou desde então. A desculpa para o abandono é não querer vê-lo “assim”. Mesmo o pai tendo outros três filhos, o único abandonado foi William. 

“O pai sabe que o filho precisa de cuidados, mas não quer ajudar. Como ele pode cuidar de três filhos saudáveis e não daquele que tem uma doença?”

Além do abandono, William integra uma estatística pouco conhecida: de acordo com o Instituto Vidas Raras, quase 80% das crianças com algum tipo de doença rara (que afeta até 65 pessoas a cada 100 mil indivíduos, de acordo com a Organização Mundial de Saúde) no Brasil sofre abandono afetivo paterno.

Foto: Arquivo Pessoal

Patrícia Ferreira Miranda com o filho William, que tem uma doença rara chamada mucopolissacaridose. Ela trabalha e cuida sozinha do rapaz

Definindo o que é o abandono afetivo paterno

Há os filhos que não possuem o registro dos pais na certidão de nascimento, uma realidade que atinge mais de 5 milhões de brasileiros, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça de 2019.

Apenas no primeiro semestre de 2020, mais de 80 mil crianças foram registradas sem o nome do pai, de acordo com a Central Nacional de Informações do Registro Civil (CRC Nacional).

Mas há aqueles que até registram seus filhos ou filhas, mas sua atuação é caracterizada pela completa ausência e negligência em toda a jornada de crescimento da criança ou do adolescente.

A advogada especialista em Direito de Família, Grace Costa, explica que o abandono afetivo consiste na omissão de cuidado e criação, bem como de assistência moral, psíquica e social, além da ausência da convivência familiar que o pai e a mãe devem ao filho quando criança e adolescente. “Embora o termo utilizado seja abandono “afetivo”, é importante destacar que não se trata simplesmente da ausência de afeto, mas de negligência dos deveres concernentes ao poder familiar que, entre outros, inclui o dever de cuidado”, reforça Grace, autora do livro “Abandono Afetivo: Indenização por Dano Moral”.

Com base nos casos que chegam ao Judiciário e naqueles que atende em seu escritório, ela diz que o abandono afetivo paterno acontece geralmente em três principais cenários. Devido a uma relação casual, na qual não havia uma relação afetiva com a mãe; quando o pai se separa e acaba constituindo uma nova família; ou quando o filho nasce com algum problema de saúde e o pai não aceita a condição que a criança apresenta. “Não há um número oficial sobre abandono afetivo paterno no Brasil, mas, se considerarmos as estatísticas do IBGE referentes ao número de crianças sem o registro do pai na certidão de nascimento e ainda referente às mães que criam seus filhos sozinhas sem a presença do pai, podemos considerar que há um número significativo de crianças e adolescentes que sofrem abandono afetivo”, avalia.

Há uma lei específica?

Apesar desse problema familiar sempre ter existido, apenas nos últimos anos o tema começou a ser levado para a Justiça por meio de ações em que os filhos ou filhas pedem indenizações pelo dano causado pelo abandono afetivo. O primeiro caso aconteceu em 2005, quando o Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou a indenização. Em 2012, em decisão inédita, o STJ reconheceu a possibilidade de indenização moral em decorrência deste tipo de abandono. O tema é polêmico, avalia Grace, e ainda há divergência de posicionamentos quanto à possibilidade de compensação por danos morais no caso de abandono afetivo. “Não há lei específica”, esclarece.

Ainda que não exista uma lei, Grace entende que a responsabilização do abandono afetivo encontra amparo na interpretação de dispositivos do Código Civil, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e da Constituição Federal, como o princípio da dignidade da pessoa humana, da solidariedade, da paternidade responsável e do melhor interesse da criança e do adolescente.

Ainda que um pai pague a pensão alimentícia, ele pode sofrer um pedido de indenização por dano moral se caracterizado o abandono afetivo. “São deveres diferentes. Isso não impede que a pessoa abandonada afetivamente venha requerer essa compensação por dano moral”, destaca Grace.

Marcas profundas

O impacto do abandono afetivo paterno marcou significativamente a vida do mineiro Paulo Miranda, que conviveu com o pai até os 11 anos de idade quando, de uma hora para outra, ele desapareceu. “Minha mãe conta que, depois que meu pai sumiu, eu mudei o comportamento, me tornei um adolescente quieto, calado e tímido. Eu me fechei muito”, lembra. Pai de duas crianças, Paulo revisitou a dor de ter sido abandonado afetivamente ao se divorciar.

“A primeira coisa que veio à minha cabeça foi: caramba, agora vou deixar de ser pai igual aconteceu comigo? Era a referência que eu tinha”, explica. Ele diz ter enfrentado uma depressão profunda e emagreceu 15 quilos nessa época. 

“Foram os meus filhos que me ensinaram que ninguém tira o meu lugar na vida deles, desde que eu esteja disposto a estar ali presente”

“Eu aprendi que não precisava deixar de ser pai apenas porque me divorciei”, relata.

A psicóloga e psicoterapeuta Triana Portal pontua que a figura do pai é importantíssima e sua ausência afeta de modo negativo em qualquer idade, mas crianças menores acabam tendo maior prejuízo por estarem em fase de desenvolvimento da personalidade, avalia. As consequências para esses filhos não eleitos para o afeto do pai podem ser baixa autoestima, medo, isolamento a sentimentos como agressividade e culpa. “Esse sentimento de culpa e inadequação pode perdurar e ser transferida para outras relações”, diz.

Na tentativa de lidar com o abandono afetivo paterno, há quem crie uma aversão pelo pai, eleja outra figura paterna ou aja como se o pai não fizesse nenhuma falta. “Mas as consequências e a falta são presentes e se notam no comportamento e discurso”, analisa. A psicóloga ressalta que não há como determinar as consequências, o dano e a extensão deste abandono afetivo já que a formação da personalidade depende de múltiplos fatores, como o temperamento inato do indivíduo, a relação com a mãe, o ambiente social. 

“Algumas pessoas conseguem lidar melhor com adversidades e desenvolvem alguma resiliência ao passo que, para outras, o abandono paterno pode ser um trauma irreparável”

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