Criança e tecnologia: uma relação delicada, que devemos observar cada vez mais de perto para extrair das plataformas eletrônicas, celulares e tablets o melhor que eles podem oferecer. Isso tudo sem esquecer que o elo mais importante dessa relação é a criança.
Pensando nisso, o Lunetas uniu esforços com a Faber-Castell, que acaba de lançar um novo projeto de aprendizado via tecnologia, o app “Floresta Sem Fim”, para entender quais são os pontos fortes e sensíveis dessa interação entre infância e tecnologia. Para isso, fomos buscar na educação e da pediatria infantil opiniões que divergem e ao mesmo tempo se complementam para chegar no que parece ser o único caminho seguro: quando se trata de criança e tecnologia, o equilíbrio é fundamental.
Floresta Sem Fim: tecnologia a favor do aprendizado e da imaginação
Imagine ver os animais da fauna brasileira criando vida em uma animação de realidade aumentada? A partir de um mecanismo simples em que a criança aproxima um lápis de cor do celular, com o “Floresta Sem Fim”, os pequenos poderão conhecer a fundo as espécies em extinção que ainda habitam as florestas brasileiras.
O app fornece informações interativas sobre cada uma das espécies em que os lápis se transformam, com o objetivo de despertar desde cedo a consciência ambiental e de preservação das espécies. Assim, o material pode ser usado por educadores e professores, além de famílias que querem iniciar uma conversa sobre sustentabilidade com as crianças.
Oferecemos abaixo duas entrevistas sobre o tema. A primeira é com o médico pediatra Daniel Becker, que semanalmente publica conteúdos em vídeo sobre desenvolvimento infantil, no canal Criar e Crescer.
No texto, ele defende a dosagem entre o tempo ao ar livre e em casa a partir de uma teoria. “Não podemos ser os chamados ‘pais helicópteros’, que ficam o tempo todo rondando a criança impedindo que ela se exponha e se arrisque. Temos que ser ‘pais beija-flor’, que observam a criança de longe para cuidar da sua segurança, mas permitindo que ela interaja com o mundo”.
Já a segunda entrevista traz um exemplo prático e bem-sucedido de como o contato com a tecnologia e as novas ferramentas digitais podem ser extremamente benéficas para os pequenos. O empreendedor Fabio Zsigmond, cofundador do MundoMaker, fala em nome projeto, que alia tecnologia e educação para oferecer oficinas e laboratórios fixos nas escolas, empresas e espaços públicos como praças, centros comunitários e bibliotecas: tudo voltado para a criança e o desejo de potencializar seu processo de aprendizado e alfabetização digital.
Natureza e tecnologia: uma questão de equilíbrio
Uma queixa muito comum entre os pais que optam por oferecer o contato com tablets e celulares desde os primeiros anos de vida dos filhos é a falta de segurança urbana, que em muitos casos impõe às crianças passar mais tempo dentro de casa e, consequentemente, demandar mais tempo de cuidado. Assim, em busca de entreter as crianças, acaba-se recorrendo aos eletrônicos.
Porém, o pediatra Daniel Becker afirma que é preciso considerar dois aspectos principais dessa questão: a primeira é que todo contato com a tecnologia deve, sim, ser mediado e supervisionado pelos pais, a fim de não expor a criança à publicidade infantil ou a conteúdos inapropriados.
A segunda é que, segundo ele, é preciso lutar coletivamente para que os espaços públicos sejam locais seguros e confortáveis de convívio familiar, ocupando as ruas e participando das discussões sobre seu uso. “As cidades mais seguras são aquelas em que as pessoas se encontram nas ruas, nas praças e convivem com pacificidade e empatia”. Confira abaixo a entrevista na íntegra.
- Lunetas – Como podemos resolver o impasse “Crianças passando mais tempo dentro de casa x Violência urbana que amedronta os pais?
Daniel Becker – Esse impasse só se resolve no coletivo. E não estou falando só de uma política eleitoral, mas de uma política do dia a dia, em que as pessoas se juntam – como, aliás, tem acontecido muito em São Paulo, em coletivos que ocupam praças, organizam passeios e clubes da natureza. Ocupar as ruas, o espaço público e convidar os amigos, os vizinhos, e se envolver nas inúmeras iniciativas que tem nesse sentido é fundamental.
É importante conhecer também as muitas instituições que trabalham pela infância – Aliança pela Infância, Rebrinc, Movimento Pracinha, Instituto Alana, enfim, muitas organizações que fazem esse tipo de proposição – não só para acompanhar a agenda cultural delas, mas para construir junto, ser um partícipe desses movimentos e cobrar dos nossos governantes que ele mantenha o espaço público lugares bons de conviver, e ofereça acessibilidade à população, com transporte público de qualidade e segurança.
As pessoas nos seus bairros devem se organizar também para garantir que suas praças estejam em boas condições, bem iluminadas e cuidadas, acessíveis às famílias. Isso tudo são políticas que devemos instituir no nosso dia a dia, pois quanto mais as pessoas ocuparem as ruas, mais segura a cidade vai ser. Cidades onde as pessoas se encerram em condomínios e vivem trancadas, onde as calçadas e os parques são substituídos por estacionamentos e as ruas ficam desertas são inseguras. As mais seguras são aquelas em que as pessoas se encontram nas ruas, nas praças, nos parques e convivem com pacificidade e empatia.
- Lunetas – Alguns pediatras já estão começando a prescrever mais natureza como forma de melhorar o desenvolvimento das crianças. Que benefícios esse contato traz?
Daniel Becker – Realmente, alguns pediatras já estão finalmente começando a prescrever mais natureza. Nós fizemos um Fórum da SOPERJ (Sociedade Brasileira de Pediatria do Estado do Rio de Janeiro) só para falar sobre isso e estamos fazendo esse movimento junto à Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).
Nos Estados Unidos e em outros países, essa prescrição já é muito comum, e é super importante, porque está mais do que comprovado o benefício que a natureza traz para a criança, tanto do ponto de vista da saúde física – coordenação motora, disposição, força física e desenvolvimento do corpo em geral – quanto da saúde mental – memória, capacidade de absorção de conteúdos escolares e na criatividade e imaginação.
O brincar livre na natureza promove muitas habilidades, como resolver problemas, trabalhar em equipe, desenvolver a coragem e a capacidade de suportar pequenos sofrimentos e avaliar riscos, além de melhorar a imunidade. Assim como o exercício é para o adulto uma panaceia dos tempos modernos, a natureza também é para a criança.
- Lunetas – Do ponto de vista clínico, que impactos o afastamento da natureza pode trazer para o desenvolvimento da criança?
Daniel Becker – O afastamento da natureza é um exílio humano muito cruel, porque nós fazemos parte dela e ela faz parte de nós. Nós somos feitos dessa matéria, então, se afastar da natureza é como se afastar da nossa própria casa. Viver entre paredes de concreto e plástico, com luz e materiais artificiais, isso tudo tem um custo de saúde mental para o ser humano.
A criança confinada fica com sua energia represada, acaba se tornando sintomática de diversas formas. Ela come mais, pode desenvolver obesidade, terá mais dificuldade de aprender, ficará mais hiperativa, agitada e terá mais dificuldade de dormir. É uma série de custos que esse exílio vai impor à criança e à família. Então, é importante equilibrar essa relação. Se não é possível estar na natureza durante a semana, é preciso fazer isso no fim de semana para compensar.
Além disso, esse afastamento tem um custo, digamos assim, espiritual. A criança que passa mais tempo entre quatro paredes tende a ficar mais mergulhada nas telas, ter acesso a conteúdos que a família nem sempre pode controlar e podem ser muito negativos, estará exposta à publicidade infantil, que pode também ser muito ruim e, principalmente, a valores de sexismo, machismo, materialismo e futilidade.
E, mais importante do que isso tudo, a criança que não tem acesso à maravilha da natureza pode perder a capacidade de se deslumbrar com as coisas simples da vida, como olhar para uma cachoeira, caminhar em uma floresta e observar os animais, ver o sol se pondo, apreciar a beleza de uma árvore. Enfim, coisas que só o mundo natural pode oferecer, e que tiram o ser humano do foco do seu próprio umbigo e o fazem lembrar que existem coisas muito maiores do que nós no mundo.
- Lunetas – Na sua opinião, como os pais podem dosar o tempo de telas com o tempo ao ar livre?
A dosagem do tempo em casa e ao ar livre é muito importante e é uma tarefa dos pais. Claro que nós dependemos do contexto em que a gente vive e dos governantes para garantir o mínimo de segurança, mas, em uma instância, é uma responsabilidade dos pais alocar tempo e estrutura para a criança poder sair.
Uma coisa muito importante também é promover o encontro das crianças com outras crianças. Longe dos adultos é que a criança desenvolve as melhores habilidades para a vida, e tem acesso a muita brincadeira, que é o que mais faz a criança feliz.
O equilíbrio é sempre em cima de uma negociação, em que é possível permitir que as crianças usufruam das telas – principalmente as mais velhas, pois até dois anos o contato deve ser praticamente zero. Fazer isso é entender que a vida deve acontecer um pouquinho nas telas – afinal, elas existem e não dá para ignorar a importância dos eletrônicos para o mundo, mas não pode acontecer apenas nesses aparelhos. A vida também deve acontecer ao ar livre, nas relações um a um, olho no olho, brincando e se divertindo. Quando mais cedo começar essa negociação, melhor. Ou seja, é nossa tarefa enquanto adultos frustrar as crianças em certo sentido, sempre que for necessário.
- Lunetas – Outra questão diretamente ligada à vida ao ar livre é a tomada de riscos, a relação com a sujeira. Você acha que os pais têm receio da vida fora de casa? Por quê?
Daniel Becker – Claro que existem os riscos da vida ao ar livre, assim como também existem os da vida confinada, uma série de doenças que surgem quando a criança fica confinada dentro de casa, que são muito maiores. É claro que a criança pode cair, ralar o joelho, mas isso também pode acontecer dentro de casa. Acidentes são parte da vida e são parte da infância.
O importante é oferecer supervisão nas duas situações. Não podemos ser os chamados “pais helicópteros”, que ficam o tempo todo rondando a criança impedindo que ela se exponha e se arrisque, pois isso se intermpõe entre o mundo e a criança. Temos que ser “pais beija-flor”, que observam a criança de longe para cuidar da sua segurança, mas permitindo que ela interaja com o mundo e exponha aos pequenos riscos dessas interações.
Nos Estados Unidos e na Europa em geral, estão surgindo cada vez mais parques naturais com riscos, onde as crianças sobem em árvores, pneus, fazem fogueira, brincam com lama e objetos pontiagudos. As pessoas pagam para levar seus filhos a esses lugares, porque lá elas podem simular a verdadeira experiência da vida real.
Quatro à sujeira, é a vitamina N, de Natureza, que faz bem e melhora o bioma intestinal que é muito importante para a saúde. O convívio com o mundo natural só faz por melhorar a nossa imunidade às bactérias e oferecer resistência.
Alfabetização digital: entenda o que é, como funciona e como implantar
Já imaginou colocar crianças para aprender robótica, Design Thinking e mindfullness? O projeto MundoMaker, de São Paulo, faz este trabalho junto a escolas (públicas e privadas), centros comunitários, empresas e ONGs.
- Lunetas – Como o contato com novas ferramentas de aprendizado influenciam a cognição, a coordenação motora, e o desenvolvimento de forma geral da criança?
Fabio Zsigmond – O fundamental no processo de aprendizagem, e que vai além de qualquer ferramenta, digital ou não, é a criação de um espaço de escuta entre o mediador e a criança, onde se descobre quem ela é, o que ela gostaria de fazer e o que tem sentido para ela. Ao propor práticas que levam isto em consideração nascerá uma motivação intrínseca na criança, ajudando-a superar as dificuldades naturais de um processo de aprendizagem.
A partir deste ponto, inicia-se um trabalho que envolve a construção de soluções para questões levantadas, que passará, aí sim, por elaborar estratégias (utilizamos algumas técnicas que provém do “Design Thinking”, como a “ideação”) e a construção de um projeto significativo.
É sabido que quando uma criança se desenvolve, ela deve construir o conhecimento através das experiências de sua vida.
Quando aconstrução de conhecimento passa pela criação de um objeto significativo, o aprendizado é potencializado.
Isto é a base do Construcionismo, teoria desenvolvida pelo educador e matemático sul africano, Seymour Papert, que trabalhou com Piaget nos anos 50 e 60 , e é também um dos precursores do desenvolvimento da Inteligência Artificial. No Brasil existe uma rede de educadores e interessados trabalhando com estes conceitos para ajudar a transformar nossa educação. Os interessados podem participar da rede acessando www.aprendizagemcriativa.org.
Seguindo este princípio, o MundoMaker proporciona um espaço onde a criança consegue, por meio do trabalho baseado em projetos, experimentar e desenvolver habilidades motoras, aprender técnicas de programação e robótica, aprender a pensar para resolver seus problemas (utilizamos muito a maiêutica, onde os mediadores, quando perguntados, estimulam as crianças a buscarem as respostas de suas perguntas ao invés de respondê-las automaticamente), e como todas as dinâmicas são coletivas, aprendem a trabalhar em equipe, a colaborar, a ter respeito, a ter paciência, a ajudar o outro, entre outros.
Lunetas – Nas oficinas da Mundo Maker, vocês mesclam o uso de ferramentas sofisticadas como impressoras 3D com materiais, digamos, analógicos. O equilíbrio entre uma coisa e outra é o que garante o desenvolvimento pleno da criança?
Fabio Zsigmond – Acreditamos no desenvolvimento integral da criança; as ferramentas, digitais ou não, são o que são: ferramentas. O importante para o desenvolvimento da criança é proporcionar um espaço onde elas se sintam confortáveis e estimuladas a criar e a aprender. A partir deste ponto, elas aprendem a utilizar as ferramentas de maneira que elas facilitem a concretização de sua criação.
Lunetas – Como instrumento pedagógico em sala de aula, por exemplo, como a tecnologia pode ajudar?
Fabio Zsigmond – A tecnologia deve ser utilizada como instrumento ou ferramenta para melhorar ou facilitar o processo de aprendizagem, isto é o bom uso que se pode fazer dela. Uma lousa interativa é de certa forma melhor que uma lousa tradicional, porém sua contribuição para a aprendizagem é relativa.
Por outro lado, se pensarmos em um projeto de construção de um sistema de captação de água da chuva, um computador com acesso a internet, por exemplo, pode permitir que se tenha acesso a informações importantes através de busca no Google ou de um tutorial no Youtube. Por exemplo, pode-se aprender qual é o índice pluviométrico da região para se estimar o volume de água que se pode esperar captar.
Em outros projetos, ele pode ter uma ferramenta instalada que permita se aprender a programar de maneira simples (o Scratch, por exemplo), e com este programa e alguns outros equipamentos, pode-se aprender a criar um sistema automatizado de irrigação, um carro controlado remotamente, uma roupa interativa que se ilumina ao receber determinado comando, etc.
Em todos estes casos, o professor utilizará a tecnologia como uma ferramenta que permite e facilita o desenvolvimento de habilidades ou competências que serão importantes na preparação desta criança ou jovem para a vida.
- Lunetas – Nas escolas em que o projeto atua, como vocês sentem a disponibilidade do professor e da criança para explorar ferramentas que até então eles desconheciam?
Fabio Zsigmond – Uma vez criado o vínculo entre as pessoas envolvidas (crianças e adultos), nasce uma relação de confiança que proporciona uma atitude de abertura a experimentação do novo. Isto é a base para o desenvolvimento do conhecimento e temos tido sucesso nos projetos em que atuamos.