A empatia em relação à sobrecarga de uma mãe, o incômodo diante do abandono da família e a preocupação sobre a vulnerabilidade das crianças em meio a turbulências sem nome são alguns dos sentimentos despertados pelo filme “A filha perdida”. Algumas mães alimentam a saudade pela vida que não foi, embora sejam felizes com a vida que se apresentou: entre a gratidão permanente e a eterna insatisfação, os caminhos e descaminhos da maternidade podem apresentar mais contradições do que julgamentos à primeira vista dão conta.
“A filha perdida” é o longa de estreia da atriz estadunidense Maggie Gyllenhaal, que também assina o roteiro adaptado do romance de mesmo nome, da escritora italiana Elena Ferrante. O filme conta a história de Leda, professora universitária (interpretada pelas atrizes Olivia Colman e Jessie Buckley), que decide tirar férias na Grécia, longe das duas filhas. Na viagem, Leda conhece a jovem Nina e sua extensa família, encontro que desperta a revisão de momentos dolorosos de seu passado como mãe e também como filha.
Leda: Fui embora por três anos.
Nina: E como você se sentiu?
Leda: Me senti maravilhosa.
O diálogo emblemático entre Leda e Nina, em que a professora universitária fala sobre a decisão de sair de casa para investir na carreira acadêmica acabou se tornando um dos principais focos de discussão entre o público. Em primeiro plano, porque a expectativa de comportamento moral e identitário sobre as mães dificulta a assimilação das características e ações de uma personagem construída de forma complexa. Em segundo plano, porque, mesmo compreendendo as dores de Leda e considerando que o julgamento pesaria menos sobre um pai que toma a mesma decisão, é preciso olhar para a criança: como não direcionar as nossas frustrações aos próprios filhos?
“Leda não é vilã, nem heroína: ela é gente como a gente”, diz a jornalista e mãe do Tom, 6, Bruna Alcantara. Como muitas mulheres que se sentem representadas pelas personagens “reais” de Elena Ferrante, Bruna também se enxerga como mãe que ama, goza, sofre, que quer ter uma carreira e estar longe do trabalho da maternagem, de tempos em tempos.
Abandono, personagem orbitante
Nas obras de Elena Ferrante, o tema do abandono atravessa a narrativa e orbita em torno das personagens, oferecendo a elas uma motivação para reflexão: Elena Greco é abandonada pela amiga Rafaela Cerullo em “A amiga genial”; Olga é abandonada pelo marido em “Dias de abandono”; em “Uma noite na praia”, única obra infantojuvenil da autora, a boneca Celina narra como a menina Mati a abandonou após a chegada de um gatinho.
Não à toa, a relação boneca-criança aparece em “A filha perdida”, dessa vez pelos olhos da criança que adoece quando a boneca desaparece. A mensagem que ressoa é a da criança no meio da tempestade de aflições: se os adultos não conseguem nomear as dores que sentem, como encorajar a criança a erguer a voz para não transformar aquilo que a machuca em opressão?
Por outro lado, a mesma boneca roubada mexe com os papéis de mãe e filha na vida de Leda. Como observou a autora e psicanalista Elisama Santos, a protagonista é tomada pela ambivalência: limpa a boneca; cuida; joga fora; faz vomitar o que precisa ser vomitado; cuida novamente. “Não há como cuidar da criança sem olhar para o adulto que cuida dela. Mas em vez de cuidar, a sociedade cobra, abandona e sufoca as mães”, escreve.
Em suas redes, a artista e ativista pela maternidade e infância, Anne Rammi, afirmou que, embora possa não ter sido a intenção do filme, fantasiar o abandono parental em prol de realizações pessoais pode se tornar um terreno lamacento e tão problemático quanto romantizar a parentalidade.
Quando uma criança nasce, a única certeza que se pode ter é a demanda por cuidado compartilhado. Não há garantia de pai presente, tampouco de rede de apoio. Às vezes, não há garantia de que exista uma mãe. Ainda assim, existe uma criança que precisa ser nutrida de múltiplas formas para garantir seu pleno desenvolvimento. Diante desses impasses, Anne defende um mundo com educação sexual de qualidade e políticas de planejamento familiar para que a maternidade não seja compulsória. Sobretudo, um mundo que priorize o engajamento tríplice entre família, sociedade e Estado diante das necessidades das crianças, nos diferentes estágios da vida.
Burnout materno
“Nem todo contato é saudável e nem toda fuga é doentia”: a ideia do psicoterapeuta e psiquiatra Fritz Perls pode ser resgatada para observar a personagem principal do filme, que vive uma espécie de “burnout materno”. Como explica a psicóloga Samanta Santos da Fonseca, a expressão se refere ao cansaço extremo, ausência de prazer, depressão e, em alguns casos, pode se desenvolver para uma psicose, colocando a própria vida e a da família em risco.
“No caso de Leda, o rompimento temporário pode ter sido o único caminho para garantir sua sobrevivência psíquica”
Além disso, como observa a psicóloga, as feridas abertas de uma infância mal nutrida permanecem somatizadas por Leda em seus desmaios, herança da própria mãe. Segundo ela, é preciso encontrar a “filha perdida” em nós, elaborar as dores de criança para que, como adultos, seja possível ofertar a compreensão, a paciência e o carinho que muitas vezes não recebemos dos próprios pais.
Espelho da maternidade
Para muitas mulheres, a construção de uma narrativa não-linear e de personagens complexas em “A filha perdida” é sinônimo de conforto. Assim como os olhares de Leda e Nina denunciam uma cumplicidade silenciosa entre a mãe mais velha e a mãe mais nova, o público feminino se identifica tanto pela ausência quanto pela poética dúbia do maternar.
“O filme ajuda a entender a maternidade sobre diferentes aspectos, e não apenas julgá-la sobre uma decisão tomada ou a se tomar”, defende a jornalista e mãe da Sophia, 12 , Caroline Meire. Como mãe solo e sem rede de apoio, Caroline lembra do período em que a filha precisou morar com os avós, enquanto ela se dedicava aos estudos e ao trabalho. “Eu chorava horrores, sofria, sentia saudades, mas vivia minha vida. Não deixei de ser mãe nesse espaço de tempo”, relata.
Em confronto com os estereótipos de gênero, como aponta Samanta, o desafio para as famílias com crianças passa a ser reinventar identidades, construindo novas ideias do que significa ser mãe, e se sentir confortável com essa relação. A existência do “outro” – seja este um pai, uma avó, uma creche – é fundamental para a saúde física, mental e emocional de qualquer cuidadora ou cuidador.
“Se o silêncio e o cuidado de si não forem colocados em perspectiva nas relações, a maternidade será adoecedora para as mulheres”
A história de Leda é particular por suas escolhas e consequências; coletiva ao retratar experiências de ordem social impostas exclusivamente às mulheres; e “universal” quando encontra sentimentos e vivências variadas. De vítima a algoz, Leda pode ser tudo, menos caricata e, por isso, aceitá-la e digeri-la em sua humanidade exige sensibilidade e desapego ao estático. Tal qual a parentalidade que nos confronta com seu espelho cotidiano, em jogo de luzes e sombras: destrói expectativas, alimenta afetos e trava, diariamente, uma luta imaginária contra a culpa.
Leia mais
Depressão pós-parto
Ainda considerada um tabu, a depressão pós-parto é uma realidade que atinge cerca de 20% das mulheres brasileiras. Uma pesquisa da Universidade Federal de Pelotas (UFPE), encomendada pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), revelou que questões socioambientais e econômicas influenciam a estatística: uma em cada quatro mães que vivem na pobreza e extrema pobreza enfrentam quadros de exaustão mental, emocional e física.
Com metade dos lares brasileiros chefiados por mulheres, como aponta o último censo do IBGE de 2020, as mães passam a acumular jornadas exaustivas. “No Brasil, sair temporariamente de casa para investir na própria carreira certamente não seria uma opção para a maioria das mulheres”, diz Samanta.